Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 08 de agosto de 2010

A Origem (2010): mais uma obra-prima de Christopher Nolan

A prova que grandes filmes, ainda que com grandes vislumbres mercadológicos, independem unicamente de uma experiência visual inovadora para funcionarem.

Saindo da sessão de “A Origem”, tinha diversos questionamentos em mente. Mas diferentemente do que eu pensava antes de adentrar à exibição, as questões remanescentes não eram de ordem narrativa, da complexidade cronológica, ou do enredo belamente arquitetado. Talvez ainda estivesse sob efeito desse encantamento também, mas acima de tudo estava me questionando sobre a vida, sobre a realidade e sobre o subconsciente.

Outrora “Batman – O Cavaleiro das Trevas” colaborou com mudanças na organização dos prêmios da academia, ultrapassou a honrosa marca de arrecadação bilionária, fez de Heath Ledger um imortal da cultura pop e ainda de quebra levou dois Oscar para casa. Uma vez que Christopher Nolan veio do blockbuster mais ovacionado dos últimos anos, cabia a ele a responsabilidade de manter o altíssimo nível apresentado anteriormente. E ele o fez.

Por esses fatores, “A Origem” já nasceu grandioso; portanto, consequentemente, encarregado de grandes responsabilidades. Particularmente, sempre achei Nolan um cineasta desalmado. Extremamente talentoso, sem dúvidas, mas desalmado. Seus filmes sempre foram bem roteirizados, bem dirigidos, e tecnicamente apurados. Contudo, apesar de um bom conteúdo para discussão, o público não cultivava amor pelas obras. Eram filmes-cabeça, mas, permitam-me o trocadilho, não alcançavam o subconsciente.

O filme narra a história de Don Cobb, um ladrão que atua roubando e modificando informações no subconsciente das pessoas. Visando se redimir de sua vida criminal, Cobb aceita participar de uma última missão, onde ele terá que implantar uma informação na mente de uma pessoa, sem que a mesma perceba isso.

Analisando a filmografia do diretor, temos a originalidade e genialidade de “Amnésia”, e seu cinema levemente independente; o bem estruturado “O Grande Truque”; e finalmente chegando à franquia “Batman”, que elevou em definitivo Nolan ao status o qual se encontra. “Batman Begins” foi dotado de competência e coragem, ainda que contasse com um Christian Bale inexpressivo e sem carisma, a execução de um humor sem graça, e cenas de ação pessimamente dirigidas. Em “O Cavaleiro Das Trevas”, o diretor soube equilibrar os elementos de maneira muito mais respeitável, com um roteiro mais rebuscado, e trazendo a vida um dos personagens mais icônicos do cinema. Contudo, vale observar que ainda que Heath Ledger tenha interpretado de maneira tão visceral, necessariamente foi preciso um bom suporte do diretor para que o resultado fosse obtido com tamanho êxito.

Entretanto, citei os filmes anteriores – em especial o último -, no intuito de fazer uma retrospectiva, obviamente, mas também expor a maior qualidade – que acaba se tornando um grande defeito – dos filmes de Nolan: Ele cria tantos ápices durante o decorrer da película, que o clímax em si acaba não sendo condizente com os espetáculos que foram apresentados anteriormente. “O Cavaleiro das Trevas”, por exemplo, sofreu bastante com isso. Foram tantas seqüências mirabolantes – todas protagonizadas pelo Coringa, é claro -, que o ato final acaba culminando em situações corridas e previsíveis, que são salvas pelo conjunto da obra, mas que se tornam pífias se analisados os demais embates “coadjuvantes” do filme.

“A Origem” não sofre com esse problema. Nolan soube dosar o fluxo de informações, fazendo com que o espectador permaneça alerta aos cortes abruptos de realidades da narrativa, mas não secundarizando as grandiloquentes sequências visuais, que contam com uma tremenda competência técnica e estética e ainda grande criatividade na utilização dos efeitos especiais/visuais. E o melhor de tudo é que o filme tem sim um clímax conivente com o que é apresentado na obra. Na verdade são quatro momentos concomitantes, tanto no que tange a ação, quanto nos desfechos psicológicos e emocionais.

Falando da competência cinematográfica de Nolan, faltaram enquadramentos mais precisos, sem uma identidade mais precisa da paleta de cores, ainda que a estética do diretor e a fotografia trabalhem harmonicamente nos diversos ambientes e locações do filme. Esse é um longa no qual a técnica é impecável, mas é apenas uma coadjuvante da trama. Vale citar o belo trabalho da direção de arte, que opera de maneira tão concisa na criação e ambientação de algumas cenas que beiram o surreal. Temos também uma excelente utilização da câmera lenta, da maneira mais bela que o cinema oferece, onde trabalham de maneira que acresce à narrativa dramática e a conotações poéticas da cena.

O roteiro surpreende na maneia como amplifica a premissa inicial do enredo. Ele não se prende à uma trama policial ficcionista, mas sim apresenta um conteúdo dramático e psicológico bastante consistente por trás das grandiosas cenas de ação. Nolan viaja um pouco por “Vanilla Sky”“Matrix”, e por Charlie Kauffman em geral, mas ainda assim consegue ser original na forma como trabalha esses fatores. Ele questiona a realidade, a subjetividade e o subconsciente, que consegue ganhar vida por meio do elenco brilhante.

Por sinal, que elenco fabuloso! Ainda que cada um deles não esteja em suas melhores interpretações, há  aqui um conjunto harmônico e maduro, de novos e velhos talentos, que brilham em tela e conseguem brechas para interpretar em meio à complexidade da trama. Leonardo DiCaprio, ator que mais tenho respeito no cenário atual, está em seu melhor ano. DiCaprio cresceu infinitamente desde “Titanic” e calou a boca de quem quer que seja ao decorrer de suas interpretações. Em um mesmo ano onde protagonizou a obra-prima “Ilha do Medo”, DiCaprio optou por um papel bastante semelhante aqui – se observarmos por determinada perspectiva -, e se saiu novamente brilhante. Protagonizou os dois melhores filmes do ano até então.

Marion Cottilard aparece poucas vezes no filme, mas suas inserções são de tamanha competência que as cenas acabam focando-se nela. Diria ainda que o grande drama do filme gira em torno de Marion, e portanto cabe a ela explorar esse “fator humano”. Ellen Page está muito à vontade e se apresenta confortável em seu papel, ainda que não protagonize nenhuma cena de maior carga. Joseph Gordon-Lewitt tem um leve tom de humor e estrela aqui uma das melhores sequências de ação dos últimos anos. Michael Caine, Cillian Murphy e Ken Watanabe complementam o elenco com competência.

Os efeitos sonoros são de uma competência absurda, que tornam os tiros reais de tal maneira que consegue assustar. A sala do cinema reverbera com uma sonoridade tão poderosa, regada com a trilha sensacional orquestrada pelo maestro Hans Zimmer. Ele mescla violinos, tambores e guitarra, em uma constante pulsação, em tons crescentes e distoantes, dando um tom criativo e especial à trilha do filme.

Ouso dizer que “A Origem” seria uma representação mais comercial de todos os produtos audiovisuais que trabalham em cima do tema subconsciente, resultando em um produto misterioso, criativo e complexo. A prova que grandes filmes, ainda que com grandes vislumbres mercadológicos, independem unicamente de uma experiência visual inovadora para funcionarem. Existem conteúdo, técnica e personagens, onde todos são coadjuvantes, onde não se impõe sobreposições, mas sim onde eles coexistem em uma relação pacífica, que objetiva uma única finalidade: Criar uma obra-prima.

Amenar Neto
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