Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 24 de abril de 2010

A Estrada

Depois de "Onde os Fracos Não Têm Vez", o autor Cormac McCarthy ganha mais uma adaptação cinematográfica. Desta vez é o seu premiado "A Estrada" que chega a tela grande, e o resultado é mais um ótimo filme.

“A Estrada” teve uma trajetória conturbada até chegar aos cinemas norte-americanos. Filmado nos primeiros meses de 2008, o longa tinha previsão de estreia em novembro do mesmo ano, época propícia para filmes que desejam concorrer ao Oscar. O adiamento, no entanto, ocorreu. Para muitos, foi o sinal de que a produção não tinha qualidade para tanto. Os produtores Bob e Harvey Weinstein, porém, alegaram que o filme iria se beneficiar de um processo de pós-produção mais longo, o que, consequentemente, daria um “acabamento” melhor a fita.

16 de outubro de 2009 foi a data marcada para a nova estreia de “A Estrada”, a qual foi substituída, posteriormente, por 25 de novembro, novamente próxima ao período das premiações, mas um ano depois de quando deveria ter sido lançado. A campanha dos Weinsteins, porém, não funcionou, e o longa ficou de fora da disputa por estatuetas e globos de ouro, sendo totalmente ignorado. Passados alguns meses, ele chega agora aos cinemas brasileiros cercado por péssimas expectativas. Entretanto, a película surpreende e mostra uma sensível história de sobrevivência de um pai e um filho em um mundo absolutamente destruído.

A trama traz personagens sem nomes. Um pai (Viggo Mortensen) e seu jovem filho (Kodi Smit-McPhee) lutam para se manterem vivos no planeta após um inexplicado e devastante cataclisma ter dizimado a civilização. Toda e qualquer vida animal e vegetal também deixou de existir. O que sobrou foi um cenário cinzento, destruído e assustador. Assim como eles, sobreviventes vagueiam pelas estradas à procura de comida e de um abrigo onde possam ficar livres, mesmo que temporariamente, do insuportável frio e da ameaça de gangues canibais que circundam a região.

Pai e filho andam em direção ao litoral sul, onde sonham que haverá um tempo mais agradável e tranquilidade para ambos. Até lá, porém, eles percorrerão um longo e perigoso caminho cercado por obstáculos físicos e psicológicos. Enquanto uma arma com duas balas resume a desesperança do pai em relação a vida, o filho ainda deseja conhecê-la melhor. Quer avistar, pela primeira vez, uma criança como ele, o azulado mar ou mesmo uma lata de comida. A bondade do menino, porém, contrasta com a firmeza e o egoísmo necessários à sobrevivência dos dois.

Adaptado das páginas do livro homônimo vencedor do Pulitzer de Cormac McCarthy, “A Estrada” não traz vilões nem mocinhos em sua história genuinamente triste. Seus dois personagens podem até se considerar bons moços, como gosta de ressaltar o pai diversas vezes. No entanto, eles não conhecem os limites de crueldade que podem chegar quanto o assunto é proteger um ao outro. O ideal é ignorar o próximo, desde que ele não mexa com ambos. Mas se isso acontecer e a vingança for possível, ela irá ocorrer nesta terra sem lei.

Escrito pelo desconhecido Joe Penhall e dirigido pelo australiano John Hillcot (“A Proposta”, de 2005), o filme retrata com perfeição a batalha diária de ambos para se manterem vivos. Seguindo regras próprias, eles caçam comida em todos os lugares, enfrentando, eventualmente, desafios, que vão desde a própria paranoia até ameaças de bandos de criminosos verdadeiros. O suicídio é uma opção pensada a toda hora pelo pai e essa sensação é passada de forma tão eficiente para o público que chegamos a achar essa a melhor opção para o destino dos dois.

O sofrimento é tanto e as razões para continuarem vivos são mínimas que princípios éticos são desvirtuados até mesmo pela audiência. O que eu faria no lugar deles? Essa é uma pergunta que nos atormenta durante toda a película e que reflete o acerto de Penhall e Hillcot na filmagem de uma história premiada da literatura internacional. Sem se renderem a medidas comerciais hollywoodianas, a dupla não transforma este drama em uma mera aventura rasa cheia de perseguições e tiros, como chega-se a desconfiar durante a introdução do filme.

Personagens aparecem e desaparecem na trajetória de pai e filho a toda hora. Alguns são de índole ruim, outros julgam precipitadamente a dupla como vilã e outros são simplesmente inofensivos. Os encontros são casuais, passando longe de um ditatismo chato e cheio de lições de moral. Técnicas comerciais para manter a tensão também são dispensadas, transformando o longa em uma obra feita para um público seleto, acostumado com um ritmo mais lento e cadenciado, sem grandes reviravoltas e personagens carismáticos.

É bom que se diga, porém, que “A Estrada” passa longe de ser um sonífero. A direção segura de Hillcot juntamente com a edição eficiente do tradicional parceiro Jon Gregory evitam qualquer comparação indevida. Além disso, o filme possui uma equipe técnica muito competente. A fotografia de Javier Aguirresarobe (“Vicky Cristina Barcelona”) traz a sequidão exata para este cenário devastado e cru construído pela direção de arte de Gershon Ginsburg (“SWAT”). Enquanto isso, a maquiagem reflete bem a sujeira de personagens que não mais contam com a higiene básica.

Em relação ao elenco, Viggo Mortensen é o grande destaque. Ele entrega mais uma performance excelente como um pai que já está cansado de resistir ao inevitável destino, mas que precisa proteger o frágil filho dos perigos do mundo atual. O seu parceiro de cena, Kodi Smit-McPhee, complementa bem uma família em extinção. O longa conta ainda com várias participações especiais, destacando-se Robert Duvall, como um velho andarilho, e Charlize Theron, como a esposa de Mortensen, mostrada apenas a partir de sonhos “coloridos” e flashbacks que exibem dias essências da vida do casal.

Com um desfecho ambíguo e perturbador, “A Estrada” é mais uma ótima adaptação de uma obra de Cormac MacCarthy. Poderia ser mais poético, mais questionador, mas diante do que nos apresenta é, definitivamente, um filme acima da média com temática pós-apocalíptica. Apesar de ter demorado a chegar aos cinemas, vale a pena conferi-lo.

Darlano Didimo
@rapadura

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