Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 24 de abril de 2010

A Estrada

Tenso e assustadoramente humano, o longa se revela um belíssimo trabalho sobre um hipotético estado de guerra de todos contra todos em um mundo desolado e sem esperança.

É bastante interessante a fascinação humana quanto ao fim do mundo. Retratado diversas vezes nas mais variadas mídias, o colapso da nossa civilização é quase um fetiche de artistas das mais diversas áreas, com o cinema sendo um dos meios mais impactantes para se retratar esse tipo de trama. Paradoxalmente, quanto menor a escala das histórias desse tipo a serem contadas, mais pessoas e assustadores elas se tornam. É o caso deste ótimo “A Estrada”, comandado por John Hilcoat e baseado no romance homônimo escrito por Cormac McCarthy.

Na história, um evento de origem nunca mencionada transformou a Terra em um deserto árido, cinzento e sem vida. Um Homem (Viggo Mortensen) e seu Filho (Kodi Smit-McPhee) vagam pelos destroços do que já foi os Estados Unidos, sempre rumo ao litoral sul, em busca de algum sinal de vida e de meios para sobreviverem. No caminho, encaram a falta de esperança, a sede, a fome e o predador mais perigoso que existe: o próprio ser humano.

O roteiro de Joe Penhall é bastante cuidadoso ao mostrar essa visão hobbesiana da humanidade, do homem como lobo do homem. Em um planeta moribundo, sem animais a serem caçados ou plantações a serem colhidas, a vontade animalesca do homem em sobreviver consegue suplantar anos de evolução lógica ou de qualquer senso de moralidade adquirido por nossa espécie ao passar das eras. A própria falta de nomes dos protagonistas indica certa desumanização do indivíduo. É por isso que a jornada do Homem e do Filho se torna tão importante. Quando eles falam em “manter a chama acesa”, é uma referência direta à bondade inerente à visão idealizada da humanidade.

O Filho é  particularmente relevante nesse aspecto. Criado pelo Pai com o alento de histórias sobre coragem e valor, ele por diversos momentos funciona como o compasso moral de seu progenitor, a despeito de seu desejo intenso em encontrar alguém semelhante a ele. Congratulações são devidas ao jovem Kodi Smit-McPhee, que consegue transmitir isso sem transformar o Filho em mais um dos infantes adultos tão comuns no cinema.

O Pai, por sua vez, sofre com as lembranças que carrega de um mundo outrora luminoso. Levando consigo a responsabilidade de criar da melhor maneira possível uma criança que simplesmente não deveria existir em um mundo tão desesperado, ele muitas vezes se vê tentado a matar seu filho e a si mesmo, apenas para livrarem-se do sofrimento daquela existência.

Cabe aqui ressaltar o belíssimo trabalho de Viggo Mortensen na criação de seu personagem, não apenas em sua caracterização física esquálida, mas também em nos mostrar todo esse sofrimento e até o amor que ainda carrega por sua esposa. Por falar nela, a personagem é brevemente interpretada por Charlize Theron, que entrega uma das mais fortes performances femininas dos últimos tempos.

Mostrando uma sensibilidade incrível, o diretor John Hilcoat nos apresenta a cenas marcantes, como a passagem dos protagonistas pelos restos de uma grande cidade, pisoteando bens hoje valiosíssimos, mas que, naquele mundo, não possuíam valor algum.

Outra sequência magnífica envolve Pai e Filho encontrando um lugar onde podem se sentir mais humanos por um tempo. A felicidade que envolve os dois é tão palpável que chega a contagiar o espectador, mesmo com o conhecimento de que aquela situação não perduraria por muito tempo.

O cineasta, além disso, mostrou dominar as técnicas de suspense, mantendo o espectador em estado de tensão durante boa parte do filme. Duas cenas que valem a pena ser citadas são a passagem de um caminhão repleto de “sobreviventes” e a visita dos protagonistas a uma casa, que acaba tendo resultados aterradores.

O visual do filme é simplesmente perfeito, com sua fotografia sendo o principal elemento de criação daquele mundo em ruínas, em um tom acinzentado cada vez mais morto e decadente. Vale a pena ressaltar o contraste da paleta de cores nos breves flashbacks que retratam a vida do Homem antes do evento que destruiu o mundo, mostrando um lugar feliz, em cores quentes e iluminadas.

Nesse sentido, a montagem da fita lembra um pouco a primeira temporada do seriado “Lost”, principalmente na forma em que os supracitados flahsbacks são inseridos dentro da narrativa. Não posso deixar de citar a excelente direção de arte do filme e a criação dos mais diversos ambientes desolados. Apesar da simplicidade destes, o impacto que eles transmitem junto ao público é devastador.

A maquiagem da fita, a despeito de uma aparente falta de complexidade, é um dos fatores mais importantes na imersão do público naquele universo, com todos os perigos e pesadelos enfrentados pelos personagens estando presentes em cada partícula de poeira e sujeira presentes em seus corpos. O desespero e os breves momentos de alento do Homem e do Filho acabam encontrando um eco perfeito na fantástica trilha sonora da película, composta por Nick Cave e Warren Ellis.

Contando ainda com pontas inspiradíssimas de Robert Duvall e Guy Pearce (ambos praticamente irreconhecíveis), “A Estrada” possui uma conclusão agridoce bastante apropriada para um filme tão ancorado no verdadeiro oceano de contradições que é o espírito humano. Recomendado.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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