Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 27 de março de 2010

Amelia

O longa ignora o potencial de Hilary Swank e sofre nas mãos da diretora.

Hilary Swank é um caso sério. Provavelmente a melhor atriz de sua geração em Hollywood, ela sofre constantemente para encontrar papéis que se encaixem em seu perfil diferenciado, tão distante do estilo suave e glamoroso das divas loiras e delicadas que pipocam aos montes na terra do cinema. Quando Hilary consegue um personagem que explora todo seu talento, o resultado é invariável: uma atuação impecável, com a certeza de levar mais um Oscar para casa. O problema é que, até o momento, isso só ocorreu duas vezes: quando ela se tornou um nome conhecido pelo desempenho em “Meninos Não Choram” (1999) e ao interpretar a lutadora de boxe em “Menina de Ouro” (2004) – esse um dos melhores papéis femininos da década passada.

Os dois Oscar no currículo foram um fator decisivo para a diretora Mira Nair (“Casamento Grego”) escalar Swank para o papel-título de “Amelia”, biografia da piloto que abriu as portas da aviação para as mulheres, em uma época em que o preconceito e o machismo eram regra. Ambientado no período de 1928 a1937, o filme retrata o esforço  de Amelia Earhart para se destacar na aviação americana e quebrar todos os recordes possíveis.

Contrariando todas as previsões, ela consegue se tornar a primeira mulher a atravessar o Oceano Atlântico a bordo de um avião. Paralelamente, apaixona-se por seu empresário, George Putnam (Richard Gere), e vive os impasses de ter que levar uma vida que atenda aos requisitos da sociedade. Apesar do reconhecimento e da fama, Amelia não se contenta e segue em busca de novas marcas, mas acaba desaparecendo, sem deixar vestígios, no Pacífico, em sua última aventura nos ares.

Pela descrição rápida do personagem, é possível imaginar que Amelia cairia como uma luva nas mãos um pouco rudes de Swank. O problema aqui não é o potencial do papel, mas a falta de criatividade da diretora Nair em fugir da típica cinebiografia alicerçada na verve mais clássica do cinema americano. Impossível fugir das comparações com “O Aviador”, de Martin Scorsese. Fica clara a falta de vigor cinematográfico de “Amelia” se colocado ao lado do filme sobre a vida de Howard Hughes, interpretado por Leonardo DiCaprio na obra de 2004.

Se Scorsese pouco se preocupou em filmar grandiosas cenas de voos de Hughes, preferindo explorar os embates internos do personagem e destacar as características mais polêmicas que provocaram seu declínio, Mira Nair segue por um caminho bem mais convencional, entrando pouco na personalidade de Amelia e focando a história no enfrentamento de sua protagonista com a rigorosa sociedade do início do século passado. Cenas magistrais de suas decolagens arriscadas e pousos forçados recheiam o filme, mas não contribuem para dar mais densidade à trama.

Mesmo os conflitos mais interessantes são relegados pela diretora para darem lugar ao cinema-espetáculo. A relação de Amelia com o personagem de Richard Gere, por exemplo, chama a atenção, ao menos no início, pelo choque de interesses entre o empresário, em busca de fama e dinheiro, e a aviadora, motivada simplesmente por um sonho. Contudo, o que se vê depois é um relacionamento piegas sustentado por um amor incondicional que não convence. Mesmo as escolhas mais complicadas de Amelia, como se envolver com o tipo galanteador vivido por Ewan McGregor, não provocam qualquer questionamento mais profundo para os personagens envolvidos.

Nair tampouco consegue escancarar o deslocamento de Amelia diante do mundo de aparências em que ela vive. Algumas passagens são bem encaixadas para mostrar o desequilíbrio entre a aviadora e seu contexto, como as sequências em que ela personifica a garota-propaganda de uma infinidade de produtos. Mas a diretora não ousa ir muito além disso. O espírito aventureiro e rebelde de Amelia é sufocado pela condução burocrática da história. O esforço para reconstituir, com maestria, o glamour e o requinte daquele tempo termina relegando a segundo plano a personalidade contestadora e instável da protagonista.

Ainda assim, o longa não é de todo ruim. Como escrito no início, trata-se de um filme protagonizado por uma das melhores atrizes da Hollywood atual. Mesmo presa em trabalhos que não fazem jus a seu talento, é sempre bom admirar Hilary Swank em cena. Nas poucas passagens em que lhe é oferecida alguma possibilidade de se sobressair, ela consegue, apenas com o olhar, demonstrar toda a complexidade que permanece escondida em Amelia na maior parte da projeção.

Para além da trilha sonora pomposa e dos figurinos elegantíssimos, sequências simples como as divagações em off durante um voo ou a demonstração de certa insegurança contida nas atitudes da personagem conseguem salvar o filme da irrelevância total. Talvez não seja exagero pensar que, se dirigido por Martin Scorsese, “Amelia” renderia um terceiro caneco para Swank.

Túlio Moreira
@

Compartilhe

Saiba mais sobre