Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 23 de março de 2010

Soul Kitchen

Embalada por uma competente seleção de Soul Music, a comédia do diretor turco-alemão Fatih Akin, menos engajada e mais descontraída, é um passo diferente na sua trajetória.

É inverno em Hamburgo. Em um canto desvalorizado da cidade, Zinos (Adam Bousdoukos) luta contra os mais diversos empecilhos para manter o seu restaurante aberto. O que começou como uma lanchonete simples, como cara de beira de estrada e um pequeno público cativo que não exigia mais do que hambúrguer e batata frita, transforma-se em um dos lugares mais interessantes da cidade, com alta gastronomia, jovens modernos e soul music de primeira linha madrugada afora.

Em meio a essa metamorfose, Zinos tem que lidar com a mudança da sua namorada para a China, um ex-colega mafioso que o pressiona para vender o restaurante, dívidas, o irmão trambiqueiro obrigado a passar suas noites na cadeia, a vigilância sanitária e uma constante dor que trava sua coluna. Enfim, a vida desse greco-alemão é uma bola de neve de pequenas tragédias, as quais ele precisará superar para salvar aquele que é o maior alvo do seu afeto: seu restaurante, o “Soul Kitchen”.

A sinopse pode parecer fraca, trivial. E, de fato, é. Mas se resumir às peripécias e impasses de Zinos, simplesmente, é não fazer jus à atmosfera do filme do cineasta turco-alemão Fatih Akin. A despeito da storyline ordinária, “Soul Kitchen” se colore de um humor improvável. O absurdo das situações assume compassos burlescos sem, no entanto, cair no ridículo, porque se justifica pela personalidade dos personagens um pouco caricatos. A sinopse que parecia trivial em um primeiro contato é apenas o suporte para uma história leve e espirituosa.

Akin e seu roteirista Adam Bousdoukos (que é o próprio protagonista, aliás) não poupam reviravoltas e quiprocós para darem ritmo à comédia. Visto o estado em que está a vida de Zinos, o filme desfila piadas carregadas de desesperança. Ainda assim, apesar de inegavelmente presente, o teor cômico não é escrachado. Pelo contrário, “Soul Kitchen” não impõe o riso ao espectador como uma ordem. As situações podem ser exageradas, mas o humor é medido sem excessos e seduz pela sensação de liberdade que dá vida a essa geração um pouco perdida, mas que prefere rir da própria condição. Na verdade, Fatih Akin não parece ter assumido a fundo essa sua veia cômica, que é um traço novo comparado ao seu cinema, até então, essencialmente engajado. Mas a dosagem, ainda que controlada, do humor, confere caráter ao filme.

Basicamente, “Soul Kitchen” é um feel good movie, e é aí que está o seu maior encanto e a melhor definição. O paradoxo enriquece, ainda mais, esse seu estilo: mesmo sendo uma cascata de incidentes infelizes, o ânimo do filme está sempre alto, seu ritmo não perde o passo. Com uma galeria de personagens dos mais variados, o diretor desvenda uma filosofia sobre o compartilhar, a amizade e a degustação do momento presente. É um filme modesto, “feito entre amigos”, gravado na cidade natal do diretor – tudo isso transparece na simpatia do longa. O laço tecido entre os personagens e o espaço também é cativante, o que certamente causará no espectador a irresistível vontade de frequentar o “Soul Kitchen” também, na Hamburgo cosmopolita.

Esse tipo de cinema fácil e divertido, com forte apelo popular, é uma corrente em voga na Alemanha atual. Na mesma linha de “Corra, Lola, Corra” (Tom Tykwer, 1998) e “Adeus, Lênin!” (Wolfganger Becker, 2003), “Soul Kitchen” também é um filme que tem tudo para agradar o grande público. Em 1970, era Fassbinder, Wenders e Herzog que ditavam as bases do cinema alemão (importando-se muito mais em trabalhar a linguagem e a narrativa, independentemente do apelo popular, por sua vez). Depois deles, foram vinte anos de um cinema comercial pobre, no geral, até surgir essa nova geração de jovens cineastas, bem-sucedidos em levar o cinema alemão para o resto do mundo. Fatih Akin é um dos nomes que encabeçam essa nova geração.

Em “Contra a Parede” (2004) e “Do Outro Lado” (2007), seus longas-metragens precedentes, que fizeram a crítica conferir ao seu nome uma certa importância no meio do cinema contemporâneo, Fatih Akin marcava com alguma ostentação sua necessidade vital de voltar às suas origens. Com “Soul Kitchen”, o cineasta tenta fugir do seu estatuto de jovem turco (literalmente) dessa “Nouvelle Vague” alemã, fazendo um filme que não evoca o discurso sobre a questão da identidade (ou da sua perda) e das diferenças culturais conflituosas. Gregos, turcos, alemães, homens, mulheres, jovens e velhos coexistem, simplesmente.

Não houve, no entanto, uma ruptura total com a sua temática anterior, uma vez que o greco-alemão Zinos faz tocar mais uma fez na tecla dos imigrantes na Alemanha, mas isso é feito sem grandes debates sobre a sua integração na sociedade ou busca incessante pelas raízes. E esse é mais um fator que faz com o filme seja um feel good movie – talvez menos representativo e engajado do que seus outros trabalhos, mas expressivo, ainda assim.

Outro fator que contribui para a empatia de “Soul Kitchen”, provavelmente o mais importante, é o impacto da trilha sonora. Não raro (felizmente), a escolha musical em um filme enaltece muito o seu desempenho, isso é tão claro que chega a ser quase banal comentar. Ora, nesse caso, o papel da música vai além – ela mesma é uma personagem. Com uma gama muito bem montada, que junta composições originais com nomes conhecidos e com pequenas surpresas agradáveis (como música grega), o Soul e a Funk Music são a cereja do bolo.

M. Martinez
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