Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 20 de março de 2010

O Livro de Eli

Nem a competente participação de Denzel Washington e a bela fotografia de Don Burgees tirarão mais um thriller pós-apocalíptico do esquecimento daqui alguns meses.

Filmes que se passam em um tempo pós-apocalíptico vêm se tornando quase um gênero nos últimos anos em Hollywood, dando origem a obras de qualidades distintas. A sequidão da Terra costuma reinar nestes longas, assim como a existência de um herói capaz de combater a todas as mazelas que passaram a acometer os sobreviventes desde o “fatídico dia”. Os vilões, porém, diferem. Se “Eu Sou a Lenda” traz zumbis nesta função, “O Exterminador do Futuro 4” mostra máquinas a caça dos homens, enquanto que o recente “Vírus” traz uma pandemia como a maior afronta aos seres humanos. Até mesmo as animações tem se rendido à temática, com dois ótimos exemplares: “Wall-E” e “9 – A Salvação”. Voltando a retratar o planeta em destruição e colocando um herói religioso no papel principal, “O Livro de Eli” erra ao sobrepor a técnica ao conteúdo, constituindo-se em uma obra tão bela quanto vazia.

A trama se passa cerca de 30 anos após uma guerra nuclear ter afetado a camada de ozônio e os consequentes fortes raios solares terem feito do homem uma raça em extinção. As poucas pessoas que sobraram brigam entre si por um prato de comida ou por uma garrafa d’água, e o escambo é a moeda que funciona nos dias atuais. Não há civilização aqui, nem lei. Fugindo das inúmeras gangues existentes, mas certo do caminho que deve seguir, está Eli (Denzel Washington), um andarilho que guarda em sua bolsa o segredo que o faz percorrer o seco solo americano há anos.

Não sabemos quais são suas intenções, muito menos quem de fato é esse homem. Sua religiosidade e capacidade de lutar, no entanto, são inquestionáveis. Todos os que ameaçam impedir sua passagem são mortos sem piedade. O destino, então, o leva a uma cidadela, cujo líder entende a força do livro que Eli carrega. Ele se chama Carnegie (Gary Oldman) e há anos envia, sem sucesso, seus capangas a procura de um exemplar da obra. A chegada do andarilho parece pontual, mas ele não tem ideia de quão difícil será detê-lo diante da fé e força de Eli.

Dirigido pelos irmãos Albert e Allen Hughes (“Do Inferno”), “O Livro de Eli” tem um início acachapante. Em uma mata fechada, um gato cheira um cadáver, para segundos depois ser fatalmente atingido por uma flecha. Tratava-se de uma armadilha desenvolvida pelo herói que nos acompanhará até o final do filme. A fotografia inspirada e uma direção meticulosa dão o tom e nos deixam ansiosos pela continuação do longa. A promessa, no entanto, é apenas parcialmente cumprida. A beleza permanece até os créditos finais, mas a história nunca convence, além de o ritmo se perder pelo caminho.

A primeira meia hora da fita dispensa explicações e se fixa na ação. Eli é mostrado como um verdadeiro guerreiro, com seu afiado facão a tiracolo, caminhando em direção ao oeste do país. Gangues de ladrões tentam surrupiá-lo, mas, desconhecedores da capacidade desse homem, acabam sucumbindo. Entre silêncios eficientes e lutas bem sincronizadas e editadas, o filme vai bem durante esse período. A ignorância dos rumos a serem seguidos e do passado já vivido é uma opção acertada do roteiro do estreante Gary Whitta. A dúvida, entretanto, continua e faz o público se questionar quando verdadeiramente esta trama terá início.

O desenvolvimento lento do enredo incomoda bastante, apesar de parecer, primeiramente, uma opção diferenciada do roteirista. O que se vê depois, no entanto, é que de fato não há quase nada a ser contado nesta pobre história. Trata-se de um road movie (percorrido, durante boa parte, a pés) raso como poucos, com um fundo religioso cheio de ensinamentos clichês, além de haver uma perseguição sem graça pelo caminho. Pois é, para tentar inserir ainda mais confrontos durante o longa, o roteiro inventa um vilão com motivações ridículas para caçar Eli, bem como cria uma espécie de seguidora do personagem de Washington para dar vazão a essa opção mais comercial.

Mas o que há de pior em “O Livro de Eli” é sua indefinição por um gênero cinematográfico. Não sabemos se trata-se de um filme de ação ou de um drama, e até mesmo ao final da projeção a escolha não ocorre. Classificá-lo como ação talvez seja o mais apropriado, no entanto, o ritmo lento e quase sonolento da narrativa afasta a certeza. Já o drama se instala em diversos outros momentos, principalmente quando o protagonista tenta inserir reflexões por meio de offs ou de conversas com outros personagens. A pouca profundidade, porém, é a tônica. O filme chega até mesmo a dialogar com a comédia, principalmente quando um casal de velhinhos combativos surge na história, mas as risadas param por aí.

Se há dois pontos fortes no longa, esses são a atuação de Denzel Washington e a fotografia de Don Burgees. O ator sustenta a trama com sua típica discrição e talento transbordante. Mesmo com um roteiro raso, Washington tenta transformar Eli em um indivíduo complexo nas cenas oportunas, e em algumas até consegue. Sua capacidade física também impressiona. Já Burgees faz do filme um espetáculo visual. Intensificando o clima seco da região, ele escolhe os filtros corretos para deixar a fita bela sem comprometer a proposta da trama. A cena em que Washington luta com vários outros homens no meio de uma sombra é um destaque especial. Burgees, porém, vacila nos ambientes fechados, deixando-os visivelmente artificiais.

Sem uma proposta definida da mensagem que deseja passar, “O Livro de Eli” é uma mistura nada agradável de “Farenheit 451” com “Mad Max”. Suas reflexões acerca da importância de um livro em especial pouco funcionam, assim como sua edição não o transforma em um grande filme de ação passado em um período pós-apocalíptico. Além disso, a maneira como trata o cristianismo o fará desagradável para ateus e agnósticos ou não, já que sua mensagem é inteiramente inconsistente.

Darlano Didimo
@rapadura

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