Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 24 de janeiro de 2010

Chéri

Stephen Frears se entrega ao drama e compromete o potencial irônico.

O novo filme de Stephen Frears (“A Rainha”) é um exemplo ideal para ilustrar as consequências de escolhas equivocadas na condução de uma história. Aqui, o diretor se esquiva da comédia burlesca que caracteriza a primeira parte do filme para concluir sua obra como um drama pesado calcado nos conflitos gerados pelo amor impossível. Fosse o longa inteiramente alicerçado no tom satírico e na inspiradora ironia dos momentos iniciais, o espectador não sentiria falta de um clima mais enérgico e arrebatador ao longo da projeção.

A trama acompanha o romance entre a cortesã Léa de Lonval (Michelle Pfeiffer) e o bon vivant Chéri (Rupert Friend), filho de Madame Peloux (Kathy Bates), outra famosa prostituta na Paris do início do século 20. A história é introduzida por meio de uma divertida contextualização sobre a prostituição na França durante o período conhecido como Belle Époque. Um narrador bem-humorado, lembrando os locutores dos filmes de Woody Allen, apresenta Léa como uma mulher desprendida do amor, apesar de constantemente envolvida com um ou outro cliente. Ao se aposentar, ela se aproxima de Chéri, um rapaz algumas décadas mais novo e com amplo histórico de conquistas femininas, e experimenta, talvez pela primeira vez, o amor e as complicações naturais de uma paixão delirante.

Diálogos pontuados por uma mordacidade sutil e simultaneamente ferrenha dão o tom desse primeiro arco da histórica, marcado pela sensualidade latente dos protagonistas. A trilha sonora e a fotografia colaboram com o aspecto de sedução, que atinge o ápice com as ousadas cenas de corpos desnudos e sexo ofegante. A mise-en-scène de Frears retrata com exatidão a falsa moral daquela sociedade, quando as pessoas extravasavam seus desejos com elegância e polidez. A alternância entre ambientes escuros (principalmente quartos) e paisagens abertas, como jardins e varandas, completa o contraste entre o que era exposto nos círculos sociais e o que era restrito a quatro paredes.

Os fuxicos e comentários maldosos de Léa e Madame Peloux, atentas a todos os acontecimentos duvidosos da vida alheia, intensificam a comédia de costumes e mostram as personagens como observadoras eficazes do sarcasmo por trás da elegância francesa. Os diálogos impagáveis travados entre Pfeiffer e Bates registram uma sociedade que clama por mais liberdade e menos formalidade. A graça está justamente em assistir aos personagens escapando da prisão moral que cercava as ações cotidianas naquela época.

Até aí, o longa parece uma versão mais leve e despretensiosa de “Ligações Perigosas” (1988), sucesso de Frears marcado pelos jogos de sedução, pelos diálogos ácidos e pelo comportamento híbrido dos personagens. Ao focar a história na separação de Léa e Chéri, desencadeada por um casamento arranjado e absolutamente casual, o diretor ensaia um questionamento dos efeitos colaterais das regras e da ditadura das aparências, algo que chega a lembrar outro filme protagonizado por Michelle Pfeiffer, “A Época da Inocência” (1993). Mas o cineasta inglês não tem o mesmo fôlego de Martin Scorsese para pôr em xeque as convenções sociais.

Até mesmo as metáforas sobre o envelhecimento e a impossibilidade de viver plenamente o amor devido a diferença de idade parecem deslocadas na história. Apesar de cenas carregadas de sutileza sobre o tema, como as pétalas que desmancham nas mãos de Léa, o filme se torna um pouco cansativo ao resvalar na nostalgia de mulheres aprisionadas às lembranças do passado. Ainda que o drama sobre a idade de Léa pareça estabelecer certa relação com a situação de Michelle Pfeiffer, é surreal constatar o encanto da atriz aos 50 anos. A câmera de Frears funciona como cúmplice da beleza deslumbrante de Michelle, uma das estrelas de “Ligações Perigosas”. Mesmo com as performances certeiras de todo o elenco, com destaque para a atuação inspirada de Rupert Friend e a presença entusiasmada de Bates, é ela que concentra toda a suavidade do filme.

Diante da separação, os personagens agem como se não se importassem com o amor que se consolidou entre eles. Mas a pose vai se desgastando lentamente, a ponto de o filme se entregar ao ciúme que aborrece o casal afastado e à expectativa do reencontro. Apesar de sequências primorosas como a montagem alternada que mostra o casamento de Chéri, a solidão de Léa e, consequentemente, a tristeza de ambos, não há como receber bem os novos rumos do filme depois de admirar o estilo de Stephen Frears nos 40 minutos iniciais. “Chéri” se trai por vislumbrar o que poderia ter sido e escancarar todo o potencial que desperdiça pelo caminho.

Túlio Moreira
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