Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Vício Frenético

Se utilizando de um ácido humor negro para mostrar o declínio de um ser humano por conta do uso de drogas, o diretor Werner Herzog nos traz este ótimo longa policial, intitulado “Vício Frenético”. Estrelado por Nicolas Cage, o filme apresenta o ator em seu melhor trabalho em anos, sendo ele a grande força da produção.

Na edição do RapaduraCast dedicada ao ator Nicolas Cage, astro deste “Vício Frenético”, foi comentado o quanto Cage se encaixa bem em papéis bizarros. Não pude deixar de pensar nesta tese durante a sessão do novo longa de Werner Herzog. Espécie de reimaginação do longa homônimo comandado por Abel Ferrara e estrelado por Harvey Keitel em 1992, a fita traz Cage como Terence McDonagh, tenente do Departamento de Polícia de Nova Orleans e um homem que está sendo corroído pelo uso de drogas.

Inicialmente, o anti-herói desta produção nos é apresentado como um homem essencialmente bom. Durante a passagem do furacão Katrina, o policial foi um dos poucos a permanecer na cidade, cumprindo o seu dever. Durante esse evento, no entanto, ele machuca as costas salvando um detento de morrer afogado em sua própria cela. Esta cena, que se passa no começo do filme, será relevante durante toda a produção. Com dores crônicas após aquele resgate, McDonagh passa a tomar Vicodin, analgésico opiático receitado por seu médico para aliviar o desconforto.

Ao longo de um ano, no entanto, o protagonista já está viciado em quase todos os tipos de drogas imagináveis. McDonagh aparece novamente em cena como uma figura esteticamente estranha, sendo um homem encurvado por conta das dores, sempre vestido em um terno amarrotado e com um revólver Magnum 44 (não por coincidência a arma de Dirty Harry) eternamente enfiada em suas calças.

Certo dia, o Tenente fica encarregado de solucionar o massacre de uma família do Senegal, que pode ter sido cometido por um dos maiores traficantes da cidade, conhecido como Big Fate (o rapper Xzibit). A partir daí, vemos como aquele outrora heróico oficial da polícia se afundou, fazendo de tudo para sustentar seu vício e o de sua namorada, a prostituta Frankie (Eva Mendes).

Herzog adota um tom de humor negro para mostrar a derrocada e os atos horrendos cometidos pelo personagem principal da história, algo que faz com que o público acabe até simpatizando com Terence. Muito disso deve-se ao fenomenal trabalho de interpretação de Nicolas Cage. Assim como em “O Senhor das Armas”, o ator vive uma figura responsável por atos absolutamente imperdoáveis, mas, graças ao seu carisma e às circunstâncias atenuantes apresentadas pela película, a audiência se torna incapaz de antagonizar aquele anti-herói.

Ao contrário de Yuri Orlov, que utilizava drogas apenas de maneira “recreativa”, Terence está afundado nelas, algo que Cage consegue passar de modo incrível, em sua melhor interpretação em anos. Notem a postura física do Tenente, sempre curvada, tentando ficar na postura menos dolorosa, o modo de falar do personagem, que oscila entre o acelerado e o anestesiado, o olhar entorpecido daquela triste figura e até mesmo a forma com que ele encara as alucinações induzidas pelas drogas. Nada nele aparenta estar em ordem, contrastando com sua competência ao realizar o seu trabalho, sendo um ótimo detetive, em uma possível referência a Sherlock Holmes.

Cage está em plena forma no papel, não sendo meramente convincente, mas conseguindo pegar um homem que facilmente poderia ter sido transformado em uma caricatura em um indivíduo digno de nossa pena. Sim, rimos das situações nas quais o policial se envolve, mas é um riso nervoso, quase que nos perguntando como alguém pode chegar àquele ponto, algo que o próprio Tenente parece se perguntar em dado momento.

Sequências protagonizadas pelo ator se tornam momentos antológicos, como a abordagem a um jovem casal na saída de uma danceteria, o interrogatório das senhoras idosas (que leva a um desabafo verbal hilário), o “passeio” com Big Fate e seus cúmplices, com direito a Cage soltando um inacreditável “O bagulho tá doido, mano!“, e o encontro dos traficantes com um criminoso italiano, que acaba gerando uma das danças mais absurdas da história do cinema.

O universo de personagem é tão complexo quanto o próprio protagonista. Seu pai (Tom Bower) é um ex-policial alcoólatra tentando se recuperar, casado com Genevieve (Jennifer Coolidge), uma bêbada em negação, que acaba roubando a cena em determinados momentos. A namorada do tenente, Frankie, acaba sendo subutilizada pelo filme, mas o relacionamento dos dois tão intrincado que poderia gerar um filme per si. Os companheiros de trabalho de Terence também são figuras longe do heroísmo, com destaque para Stevie Pruit, policial vivido por Val Kilmer e parceiro do Tenente que, de várias maneiras, é um ser humano muito pior que o próprio McDonagh.

Um dos pontos altos da produção (sem trocadilho) é a sua fotografia, feita de maneira granulada e naturalista, apostando em tons mais quentes e saturados. Em dados pontos, para ressaltar a loucura do Tenente, Herzog se utiliza de uma câmera em 16mm em ângulos tremendamente bizarros, quase como se naqueles momentos a própria fita estivesse “viajando”. Aliás, me sinto na obrigação de destacar o ótimo plano-sequência utilizado pelo cineasta na cena da prisão de um dos capangas de Big Fate por Terence.

Não seria estranho fazer um paralelo entre a jornada do Terence e a da própria cidade de Nova Orleans. Saindo destruído após atos heróicos cometidos em um período absurdamente turbulento, vemos as ruínas de algo que antes parecia promissor e que falsamente se reergue, sempre com sujeira dentro de si, mas com uma promessa de redenção. Contando ainda com um final tremendamente cínico, mas com uma ponta de esperança, “Vício Frenético” se mostra um policial tremendamente eficaz, bem como um filme poderosíssimo sobre a relação de um homem com as drogas. Recomendado.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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