Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 02 de janeiro de 2010

Lula, o Filho do Brasil

O longa é o retrato de uma geração de brasileiros criados pela agonia da miséria e da repressão.

Cinebiografias costumam deixar rastros de polêmica em torno de alterações drásticas na vida dos personagens reais levados ao celulóide. O que o espectador precisa ter em mente, antes de assistir a filmes como “2 Filhos de Francisco”, “Cazuza – O Tempo não Para” e “Meu Nome Não é Johnny”, para citar alguns exemplos recentes do cinema nacional, é o olhar dramático que o diretor deixa marcado no produto final. Afinal, um cineasta precisa criar soluções narrativas e estéticas para a história que quer contar, e as saídas encontradas quase nunca respeitam os limites da realidade. No caso de “Lula, o Filho do Brasil”, essa discrepância entre fato e ficção é ainda mais latente por se tratar de um retrato de segunda mão, o filme sendo baseado em um livro escrito sobre a vida do presidente brasileiro. Em cada uma dessas instâncias de registro, foram sendo adicionadas aos acontecimentos imprecisões e pessoalidades que impossibilitam a transposição fiel do contexto em questão.

Ignorando as polêmicas relacionadas a eventos distorcidos, omissão de passagens e alterações históricas, e atendo-se aos 128 minutos do filme dirigido por Fábio Barreto, temos um retrato mordaz de uma geração de brasileiros criados pela agonia da miséria e da falta de liberdade, representados pela força dos dois personagens centrais, Lula (Rui Ricardo Dias) e sua mãe, Dona Lindu (Glória Pires). A primeira parte do longa, situada no sertão pernambucano, acompanha o nascimento de Lula, em 1945, e a sobrevivência difícil de sua família, em uma conjuntura intensificada pela angústia da seca e da pobreza.

Esse primeiro momento da obra propicia a captação de imagens fortes pela lente de Fábio Barreto. O cineasta entrega uma direção elegante que, na maior parte do tempo, não resvala na simplicidade estética tampouco em uma composição engessada de seus objetos em cena. O espectador contempla imagens de beleza pungente, como o pequeno Lula, em pé, destacando-se em meio à sequidão, com Dona Lindu em segundo plano, desolada pelo cenário agreste. A sinceridade das sequências iniciais é amparada pela naturalidade dos atores, que caracterizam os regionalismos sem denotar qualquer tentativa de construção exótica ou deboche cultural.

A “estética da miséria” de Barreto é, em boa parte, corroborada por elementos que ajudarão o espectador a entender o desenvolvimento do caráter do protagonista. O cineasta dá especial atenção ao efeito que animais mortos pela aridez e cruzes espalhadas pela estrada provocam no olhar angustiado do garoto, quando ele acompanha a mãe e os irmãos na mudança para São Paulo, na esperança de encontrar condições melhores. A trilha épica, com ecos de cultura brasileira, composta por Antônio Pinto e Jaques Morelenbaum, é alternada com silêncios exatos, necessários à interpretação daquela realidade cruel.

Acompanhando a vida de seu personagem principal com uma narrativa cronológica, o diretor vai intercalando, a partir de uma montagem eficiente, os contrastes que pontuaram o crescimento de Lula. Os raros momentos de lazer são seguidos de passagens que mostram o trabalho infantil. Depois, uma ida ao cinema, ocorrência envolta em encantamento e serenidade, antecede o desespero causado por uma violenta enchente na casa da família.

A maior qualidade de Fábio Barreto é não tomar Lula como personagem pronto, mas sim como alguém com o caráter em construção. Ao alcançar a chegada do jovem à fábrica, envolvido pela perplexidade diante de um mundo desconhecido, o diretor mostra como o personagem vai saindo da passividade e da aceitação de sua realidade social para a contestação e o questionamento político. Mas tudo isso, embasado pelo ambiente de furor ideológico característico da época da ditadura militar, acontece paulatinamente. O ritmo imposto às transformações de Lula não parece falso e respeita os pequenos acontecimentos que colaboram para que o personagem vá descobrindo as mudanças que algumas atitudes podem impor a determinadas situações.

Já sob a feição de Rui Ricardo Dias, Lula tem seus momentos de boemia e da descoberta do amor, ao passo em que se envolve com os sindicalistas que lutam por tratamento mais digno para os trabalhadores. Esses diferentes âmbitos de sua vida são bem conectados entre si. A devastação que a morte da primeira esposa provoca justifica seu envolvimento cada vez maior com as causas políticas. Contudo, Lula não está livre do equívoco e suas escolhas são questionadas a toda hora pelos outros e por ele mesmo.

A parte final do longa é marcada pelo bom uso de material de arquivo, especialmente na reconstrução de uma das assembleias presididas por Lula, e também por uma prolongação talvez exagerada do padecimento de Dona Lindu. Não que o espaço dedicado à personagem tenha sido excessivo, uma vez que a mãe de Lula é responsável em grande parte pela obstinação que caracteriza o protagonista, mas as passagens de suplício hospitalar poderiam ter sido encurtadas. Já o epílogo, mostrando a chegada de Lula à presidência do País, é totalmente dispensável, e destoa da proposta de não adentrar aos acontecimentos pós-criação do Partido dos Trabalhadores e carreira eleitoral de Lula. Ainda assim, “Lula, o Filho do Brasil” é um retrato espontâneo de vidas que se reerguem motivadas por uma dignidade que insiste em sobreviver mesmo na miséria.

Túlio Moreira
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