Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 06 de dezembro de 2009

Abraços Partidos

Existem alguns cineastas cujas filmografias são irretocáveis. O espanhol Pedro Almodóvar conquistou o público e a crítica com seu estilo peculiar, exagerado e belo de fazer filmes. Com "Abraços Partidos", ele homenageia a arte cinematográfica, fala de amor e mostra que não perde nunca sua genialidade.

CMYK b‡sicoAos 60 anos, Pedro Almodóvar é um dos cineastas mais respeitados da indústria. Ele já ganhou um Oscar, número injustamente proporcional às grandes obras que já realizou, além de vários outros prêmios. Almodóvar associou o próprio nome a um cinema “de arte” mais popular, utilizando-se de sua inteligência para criar uma bola de neve em quem assiste aos seus filmes, gerando curiosidade em ver tudo que ele filma. É assim que “Abraços Partidos” chega aos cinemas: com a responsabilidade de agradar aos fãs que conhecem a carreira do diretor, bem como àqueles que gostaram de “Volver”, seu filme anterior, ou de obras mais conhecidas como “Má Educação” e “Tudo Sobre Minha Mãe”.

Em “Abraços Partidos”, Almodóvar conta a história de Mateo Blanco (Lluís Homar), um cineasta que sofreu um acidente há 14 anos que o deixou cego. Sob o nome de Harry Caine, agora ele é um roteirista que conta com o apoio da sua produtora Judit Garcia (Blanca Portillo) e do filho desta, Diego (Tamar Novas). Depois que o jornal anuncia a morte de Ernesto Martel (José Luis Gómez) e o estranho cineasta Ray X (Rubén Ochandiano) aparece na vida de Harry, o passado deste volta à tona e traz com ele as memórias da paixão vivida com a atriz Lena (Penélope Cruz).

A trama parece demorar a engatar devido a escolha de Almodóvar em centrar, inicialmente, em um personagem masculino, ao contrário de suas obras mais famosas, que trazem mulheres quase sempre neuróticas em situações diversas. De qualquer forma, a partir da entrada de Lena em cena, os olhares se desviam de Mateo/Harry. Não que este seja esquecido, mas nos preocupamos menos com sua condição, já que ele está em cena para relatar memórias passadas, criando um objetivo a alcançar apenas no terceiro ato da trama. Dessa forma, não se pode dizer que “Abraços Partidos” é um filme de Almodóvar centrado em um personagem masculino, já que existe uma divisão de importância cênica entre Lena e Mateo/Harry, às vezes chegando a exaltar com mais facilidade a beleza, a vulnerabilidade e a sensualidade da personagem feminina, que é marca de Almodóvar.

Os principais atrativos de “Abraços Partidos”, além de falar da história de amor entre Mateo e Lena, são a metalinguagem e as (auto)referências que Almodóvar aborda de forma eficaz e natural, assim como já fez em outras produções.  Aqui, quando Mateo filma “Garotas e Malas”, o público é contemplado não somente com informações da realização do filme, mas principalmente por saber que muito do que é posto em cena é a visão sensível e ao mesmo tempo forte que Almodóvar tem pela arte. Aqui são salientados o processo de pré-produção, a escolha do elenco, a realização e, principalmente, a finalização.

Mas isso não é tudo. O brilhantismo de Almodóvar está nas referências abordadas. “Abraços Partidos” lembra “8 e Meio”, de Federico Fellini, a partir do ponto em que Mateo/Harry é uma representação de Almodóvar, já que Marcello Mastroianni viveu Guido Anselmi representando Fellini. O longa também tem um quê hitchcockiano, que embeleza os momentos de tensão da trama. Na comédia, Almodóvar investe nas frases de efeito, seu forte desde o começo da carreira.

Até o cinema mudo ganha seu espaço, quando Ernesto precisa de uma leitora de lábios para poder compreender o que foi filmado por seu filho, já que o áudio não estava bom. A necessidade do áudio e a referência aos dubladores é mais do que merecida na atual indústria cinematográfica. A ambição dos produtores, a incapacidade dos atores, a escala de realização, os imprevistos e as relações que acontecem em um set de filmagem são apenas simples inserções  impostas por Almodóvar que fazem com que o filme seja uma leitura de um universo que, de fora, é visto como glamuroso, mas que precisa muito mais de uma câmera para acontecer.

Mais importante que as referências ao Cinema, Almodóvar referencia a si próprio. É aqui que as características almodovarianas, facilmente identificadas, aparecem. As cores quentes, o melodrama, o figurino e maquiagem exagerados, etc. Tudo está ali. A carreira do cineasta espanhol também está implicitamente referenciada. Sua musa Carmen Maura pode ser sentida pela forma como Almodóvar exalta o talento de Penélope Cruz.

Seus filmes também estão ali. Há um pouco de “Carne Trêmula”, “Fale com Ela”, “Áta-me” e muito de “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos”. Este é praticamente reproduzido na sequência final de “Abraços Partidos”. O gaspacho envenenado, a meliante, o cenário, o vermelho e o ataque de nervos estão todos em cena. Almodóvar não se exibe pelo sucesso que ele obteve durante anos de trabalho, ele não se vangloria. Almodóvar simplesmente faz suas autoreferências e mostra como conseguiu deixar seu nome marcado na história do cinema mundial.

Em “Abraços Partidos”, Penélope Cruz é mais uma vez a grande estrela. A atriz conseguiu, ao contrário de Camen Maura (não por falta de talento desta), ser um ícone não só do cinema espanhol, mas internacional. Porém, toda vez que trabalha com Almodóvar, seu talento é abusado pelas lentes do cineasta. A beleza de Cruz está per si ou ao fazer caras e bocas de Audrey Hepburn ou a usar uma peruca quase fajuta de Marilyn Monroe. Ela é a força motora do filme.

Em determinada cena, após o sexo, ela se sente destruída ao se olhar no espelho e, no take seguinte, está incrivelmente linda; e aí entra mais uma referência não só à indústria que exalta a beleza e talento de suas musas, mas também ao culto neste âmbito da sociedade. São necessidades. Cruz vive Lena com a garra de quem não tem uma vida tão prática como sua beleza aparenta. Ao lado de Cruz, Lluís Homar desenvolve uma boa química, mas sem grande performance. O restante do elenco cumpre a necessidade de atuações regulares, sendo as melhores quando um colaborador eventual de Almodóvar aparece, como a excelente Rossi de Palma.

Erros existem, como o exagero dramático em algumas sequências e por não trazer nenhuma grande revelação a final da projeção. Almodóvar também investe em cenas desnecessárias, como Diego trabalhando como DJ em um bar ou até mesmo quando Ernesto descobre a infelidade da esposa. Mas de qualquer forma, Almodóvar lança mais um filme cuja parte estética é irretocável, desde os planos, passando pela fotografia e trilha sonora.

Os abraços são demonstrações do mais intenso afeto entre os humanos. É o toque, o sentimento de estar vivo. Quando eles se rompem, a sensação de incapacidade e frustração toma conta. Em “Abraços Partidos”, Almodóvar cria os laços e mostra que eles podem se acabar com o tempo e com as eventualidades do destino. Um belíssimo filme para ser absorvido do começo ao fim.

Diego Benevides
@DiegoBenevides

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