Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 05 de dezembro de 2009

Abraços Partidos

Em “Abraços Partidos”, Pedro Almodóvar está longe de sua melhor forma, mas mesmo assim ele presenteia seus fãs com um filme que homenageia o cinema, em especial o seu próprio.

Abraços PartidosDizer que Pedro Almodóvar errou é uma afirmação um pouco arriscada. Cineasta aplaudido pelo mundo por seu cinema único, ele jamais deve ser comparado a outros diretores medíocres que surgem diariamente, em especial em solo americano. O problema é que o espanhol já impressionou tanto, que chega a ser decepcionante quando conferimos um filme seu que não é excelente. Em “Abraços Partidos”, suas características típicas permanecem lá: as cores vibrantes dos cenários e figurinos, o humor inspirado, a trilha sonora pontual e o melodrama sufocante. Mas dessa vez, Almodóvar insere a metalinguagem como seu principal motor, fazendo diversas deliciosas autorreferências. No entanto, mesmo acompanhado de sua musa Penélope Cruz, o cineasta perde o tom em algumas cenas e nos concede um desfecho sem surpresas.

A trama gira em torno de um ex-diretor e roteirista cego, Mateo Blanco (Lluís Homar), em 2008. Desmotivado com a impossibilidade de exercer sua profissão por completo, ele prefere ser chamado de Harry Caine e não perde a chance de vender sua capacidade de escrever para diretores comerciais. Caine divide um pequeno apartamento com sua agente Judit Garcia (Blanca Portillo) e seu filho Diego (Tamar Novas), mas nada impede que eventualmente ele traga seus casos amorosos para casa. A visita de um jovem que se diz cineasta, no entanto, traz de volta a lembrança do grande amor de sua vida, uma bela e talentosa atriz, com quem viveu há 14 anos.

O nome dela é Lena (Penélope Cruz). Mas antes de se tornar uma atriz, ela era uma mera secretária do empresário Ernesto Martel (José Luis Gomes) que, nos momentos mais apertados financeiramente, bancava às vezes de prostituta. Uma ajuda essencial de Martel leva Lena a se aproximar do chefe, e os dois vivem juntos durante dois anos, até que um sonho de infância da moça mudará completamente sua vida. A oportunidade de atuar na primeira película cômica de Mateo Blanco, “Garotas e Malas”, como protagonista a afastará do empresário e a levará para os braços de Blanco, em uma paixão tão tórrida quanto proibida.

Como nenhum outro diretor do mundo, Almodóvar consegue desenvolver histórias cheias de coincidências e exageros sem parecer absurdo. Em seu último filme, por exemplo, “Volver”, até o sobrenatural foi incluído. Mas também sobram crimes, acidentes e sexo, todos inseridos com o tom que só cineasta espanhol sabe dosar. O seu clima kitsch é particular e Almodóvar sabe disso. E em “Abraços Partidos”, ele decide resgatar um pouco do cinema que já produziu, além de outros que o inspiraram, de uma maneira que só os seus próprios roteiros sabem fazer.

Através da história de Mateo Blanco, alterego de Almodóvar, o longa-metragem mostra como se realiza uma película; mais do que isso, ele defende, como nenhum outro, o cinema autoral. A pré-produção, as filmagens e a pós-produção são mostradas como etapas que necessitam da participação direta do diretor da fita, pelo menos se o seu interesse é defender uma visão única de mundo ou de cinema. E Mateo Blanco faz questão de trabalhar intensamente. A escolha de Lena, uma atriz inexperiente, para protagonizar um filme que irá romper com o seu estilo mostrado até agora é uma das primeiras genialidades desse diretor. Ninguém sabe os motivos para esse risco, mas Blanco e Almodóvar defendem sua visão com competência, pois é impossível não ser captado pelo carisma de Penélope Cruz e Lena.

Atuando em sua língua materna, Cruz é o grande trunfo dos dois filmes. Em “Abraços Partidos”, ela surge mais sexy e bonita do que nunca, e é impressionante a virada que o filme dá com o aparecimento de seu personagem. Se o longa demora a engrenar, a primeira cena de Lena já recupera esse fôlego. Sempre vestida com roupas vermelhas, a moça é primeiramente seduzida pelo dinheiro e a dedicação de Ernesto Martel, para depois não resistir ao charme de Mateo Blanco. Nos dois relacionamentos, ela se entrega inteiramente, mas é só ao lado do diretor que ela se sente completamente à vontade. E nesse quesito, o roteiro de Almodóvar não decepciona. Sem maniqueísmos, o enredo convence na mudança de rumo de Lena, apesar de se utilizar de eventos questionáveis.

Algumas sequências pontuais acabam sendo problemáticas. A queda de Lena de uma escada devido a um empurrão de Martel, o acidente de Diego e um choro inexplicável de Judit Garcia são as cenas mais expoentes desses erros. A queda da protagonista foge do estilo de Almodóvar e mais parece uma sequência de novela mexicana. O coma de Diego nunca justifica a que veio, a não ser para deixar claro que o problema visual de Mateo Blanco não o impede de se movimentar pela cidade. Já as lamentações de Judit abusam do melodrama. No entanto, é o desfecho de “Abraços Partidos” que deve deixar os fãs do cineasta espanhol certos de que esse não é o seu melhor filme. Mesmo com uma cena impagável que relembra “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos”, a conclusão é extremamente previsível e não faz jus a originalidade de Pedro Almodóvar. Em suma, faltam surpresas.

Se há falhas no quesito drama, na comédia o filme é recompensador. E a maior parte das risadas são frutos de participações especiais de atrizes que costumavam trabalhar com o diretor europeu, entre elas Kiti Manver, Chus Lampreave e Rossi de Palma. Outro personagem com uma função cômica é Ray-X ou Ernesto Junior, o filho gay de Ernesto Martel que busca vingança contra o pai. Por mais que o papel seja prejudicado pelo roteiro ao não lhe dar um final e um desenvolvimento apropriado, a atuação de Rubén Ochandiano compensa tudo, com os seus trejeitos femininos e personalidade psicopata.

Contando com a tradicional trilha de Alberto Iglesias e a linda fotografia de Rodrigo Prieto, Pedro Almodóvar faz uma boa, mas não perfeita homenagem ao cinema. Entre referências a sua carreira e a filmes e figuras clássicas desse mundo, “Abraços Partidos” deixa claro que o cinema autoral é um bem mais do que necessário. São poucos os que conseguem passar sua visão de mundo particular para as telas e menos ainda aqueles que conseguem resistir as tentações do dinheiro e defender seu estilo. Mesmo que esse não seja o melhor Almodóvar, ainda é Almodóvar, e ele merece respeito.

Darlano Didimo
@rapadura

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