Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 10 de outubro de 2009

Bastardos Inglórios

No mundo cinematográfico e nas mídias que o competem, se costuma ouvir sobre a importância de clássicos, suas imensas qualidades, seu status de cult, e de como, jamais, serão superados. Talvez isso não passe de hipocrisia.

É muito fácil falar de clássicos, ovacioná-los, dizer que “não se faz mais cinema como antigamente” e ganhar a qualificação de, no mínimo, pseudo-intelectual. Difícil é admitir que nos dias de hoje, em meio a tantas produções vagabundas, existam filmes que serão clássicos no futuro e que cabe a nós, cinéfilos, reconhecer o valor histórico que aquilo terá.

Um bom diretor aprende com seus erros. Um melhor ainda aprende com seus acertos. Quentin Tarantino, talvez a figura mais importante para a revolução cinematográfica de década de 90, encaixa-se na segunda categoria. Ao menos sob minha ótica, a filmografia de Tarantino evolui a cada produção que ele faz, e assim melhorando gradualmente ou aprimorando a técnica. No caso de “Bastardos Inglórios”, ele conceitua-se no resultado de toda a bagagem cinematográfica do cineasta. E quando falo isso, não me refiro somente a sua curta filmografia, mas em todos os filmes que ele devorava na locadora onde trabalhava.

Nesse filme temos um pouco de tudo. Um pouco de Sérgio Leone, um pouco de John Ford, um pouco de Stanley Kubrick e muito da personalidade excêntrica de Tarantino. E o mais bacana é que ele não encoberta isso hora alguma. Ele homenageia. E honra a memória de todos eles. É um filme pelo cinema e para o cinema. Para cinéfilos, em especial. Tem certos momentos e diálogos que só funcionam mesmo com aquelas pessoas que conseguem ser tão doentes pela Sétima Arte quanto ele. E por isso, considero essa a maior homenagem às películas desde “A Rosa Púrpura do Cairo” e “Cinema Paradiso”.

O filme é datado em 1941, onde a França sofre pela ocupação alemã, e em uma pacata fazenda de criação de vacas, o Coronel Hans Landa (Christoph Waltz) vai à procura de judeus. Nessa visita, a jovem Shosanna Dreyfus (Mélanie Laurent), que fazia parte de uma família de judeus que se escondia nessa fazenda, consegue escapar, porém perdendo todos aqueles que amava. Mudando-se para a cidade, após quatro anos ela consegue ser a proprietária de um cinema, onde lá ela conhece o jovem soldado Fredrick Zoller (Daniel Brühl), que se apaixona por ela.

Em outro paralelo, estão os chamados “Bastardos inglórios”, um grupo de rebeldes liderado pelo Tenente Aldo Raine (Brad Pitt), que anda causando o terror e caos nas pequenas tropas alemãs que se encontram espalhadas pela França. Essas duas histórias se unem quando a espiã Bridget von Hammersmark (Diane Kruger) consegue que os bastardos entrem na estreia de um filme sobre a vida de Fredrick, que acontecerá no cinema de Soshana. Ainda que não se conheçam, o plano de ambos coincidem: matar todos os nazistas que ali estiverem presentes, incluindo, possivelmente, o próprio Adolf Hitler.

A primeira coisa a se destaca é o roteiro do filme. Conversas sobre nada, que tornam o momento bastante crível, têm aos montes. Mas elas também dão espaço a diálogos carregados de humor negro e de grande tensão. Na verdade, Tarantino mostrou um amadurecimento consistente no segundo volume de "Kill Bill", onde ele mantinha traços, mas não era tão “pop” quanto nos outros filmes. Aqui ele segue essa linha. O filme é emocionalmente bem estruturado, com críticas afiadas e maturidade, mas volta e meia Tarantino faz questão de nos lembrar quem ele é, e que somente ele é capaz daquilo.

O cineasta consegue enquadramentos belíssimos e os movimentos de câmera dialogam de acordo com o que a cena exige. Em alguns momentos, a comicidade está relacionada justamente a essa habilidade de captura de expressões ou sensações. O diretor consegue usar o tema da Segunda Guerra de uma maneira tão distinta que é impossível não achar aquilo tudo genial. Ele dá a versão dele da história e capta uma essência sarcástica do período da guerra, que se difere em partes dos verdadeiros acontecimentos, mas que conseguem ir longe com a famosa “licença poética”. Mesmo com uma ótica um tanto “distorcida”, “Bastardos Inglórios” ocupa, ao lado de “A Lista de Schindler”, o posto de um dos melhores filmes dobre a Segunda Guerra.

Tarantino mostra grande amadurecimento estético e cria diversos momentos antológicos e plausíveis. Ele capta belamente o charme da época e ainda consegue ser eclético o suficiente para filmar os diversos “universos” que o filme abrange. Câmeras em movimentos circulares, planos abertos, closes sutis, easter eggs no plano de fundo e divisão de capítulos são algumas investidas. Tarantino pega o seu melhor e aprimora. O longa tem o timing correto, a edição precisa e consegue ter uma duração compatível com o conteúdo que pretende mostrar. A violência é ainda mais estilizada e aqui – ao contrário do que fez em “Kill Bill vol.1” -, Tarantino faz questão de ver cada centímetro dos escalpos das vítimas dos bastardos serem arrancados.

A estética do filme tem um cuidado especial. Com uma fotografia bela, um figurino charmoso e locações meticulosamente escolhidas, a imersão no universo do filme é garantida. O aspecto sonoro novamente é bastante peculiar e é utilizado como um personagem da história. Ennio Morricone dá as caras por aqui também e obtém completo êxito em seu trabalho como compositor. Novamente homenageando, Tarantino põe canções utilizadas em “Kill Bill” e reafirma que ele é pai de uma das maiores obras do cinema moderno.

O elenco merece ininterruptos aplausos. O elenco dá o máximo que pode oferecer. Brad Pitt, em atuação digna de, ao menos, uma indicação ao Oscar, constrói um personagem charlatão, com sotaque bastante carregado e com uma enorme carga cômica. Percebe-se que esse foi um trabalho muito descontraído e tudo foi uma grande brincadeira, mas com responsabilidade. Pitt brilha, como por exemplo, na cena em que ele desastrosamente tenta falar italiano; novamente uma piadinha só para amantes de cinema, suas expressões remetem diretamente ao personagem icônico Don Corleone, vivido por Marlon Brando.

Christoph Waltz dá um show de atuação e consegue roubar todas as cenas para si. Indo de momentos descontraídos aos de extrema tensão, seu personagem constitui-se frio e sarcástico, e ao mesmo tempo cuspindo ideologias geniais; como a do diálogo que ele compara os judeus aos ratos de uma maneira bastante interessante ao modo nazista de pensar, é claro. Eli Roth mostra que talvez seja melhor ator que diretor. A dupla fatal composta por Mélanie Laurent e Diane Kruger absorve a alma do charme “mulher e cigarro” e apresenta uma beleza clássica, idealizada, e munida de ótimas atuações.

E sobre seus diálogos para com os cinéfilos, Tarantino explicita bastante isso. Durante todo o filme ele referencia grandes clássicos como “O Garoto”, de Charlie Chaplin; ou “Doutor Fantástico”, de Stanley Kubrick. Ele fala sobre cinema, sobre atrizes, atores e críticos. Ele faz questão de filmar a sala de projeção, onde há a mágica caixa que emite luzes e o que há atrás da tela do cinema. Inclusive no clímax do filme, que por acaso se passa em uma sala de cinema, ele filma a projeção, em um determinado ponto, com a visível apologia ao limite que a tela do cinema tem. Ele mostra como os elementos ali ganham vida e de alguma forma interferem no mundo real.

Contudo, “Bastardos Inglórios” ainda pode ser um filme para poucos. Não porque ele seja “complexo demais” ou de “linguagem inacessível”, mas sim porque ele é deveras “cinematográfico”. Ele mostra que cinema não se faz de conceitos, nomes ou épocas. Cinema não se “entende”, mas se “sente”. Se faz de personalidade, espontaneidade, genialidade, em uma construção contínua, de renovação de referências e da desconstrução do que é clássico, cult, pop, noir ou moderno, pois tudo isso pode estar em um filme só. O próprio Tarantino encerra o filme falando através do personagem de Brad Pitt, que “Esta provavelmente é sua maior obra prima”. Digo que estou bastante tentado a concordar com ele.

Amenar Neto
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