Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 14 de fevereiro de 2009

Lutador, O

O cineasta Darren Aronofsky continua com uma filmografia irrepreensível, fazendo deste “O Lutador” o seu longa mais acessível e pé no chão. Embora não tenha o ineditismo de suas fitas anteriores, o longa conta com a inacreditável performance de Mickey Rourke, que se mostra a melhor do ano passado.

Todos nós, de uma maneira ou de outra, lutamos contra a mediocridade. De certo modo, sabemos que o único modo de alcançar a posterioridade é nos destacando, sendo imortais na memória de outros, verdadeiros titãs. Randy “O Carneiro” Robinson conseguiu isso, se tornando o mais popular e querido lutador de luta-livre do mundo durante os anos 1980, visto até em jogos para Nintendo e em bonequinhos. Mesmo em franca decadência, ele continua a divertir o público em suas lutas, ainda que não esteja mais nem perto de sua antiga glória.

No entanto, em sua carreira, a idade é tudo e uma vida de excessos cobra o seu preço, forçando-o a uma vida comum e a reavaliar os erros que cometeu e os sacrifícios que fez. No entanto, como ser ordinário se você já foi especial? E como lidar com as memórias de quando você já foi alguém e com as consequências de ter chegado no topo e relegado o resto?

Esse é o tema de “O Lutador”, novo filme de Darren Aronofsky. Após lidar com thrillers matemáticos, viciados em drogas e ficções existenciais, sempre de maneiras extremamente pouco ortodoxas (e extremamente eficientes e artísticas, algo raro atualmente), o cineasta lida pela primeira vez, desde que apareceu para o mundo em “Pi”, com um roteiro que não foi escrito por ele. E o faz com brilhantismo, tomando o ótimo script de Robert D. Siegel e transformando-o em cinema da melhor qualidade.

Porém, tal resultado só é crível graças a seu protagonista e só acreditamos em Randy por conta da arrebatadora performance de Mickey Rourke. As histórias de vida de ator e personagem se misturam, já que Rourke também foi do céu ao inferno entre os anos 1980 e 1990, tendo atingido na década passada o fundo do poço, se reerguendo graças à ajuda de amigos como Sylvester Stallone (que o chamou para trabalhar em “O Implacável”) e Robert Rodriguez (com quem trabalhou em “Era Uma Vez no México” e “Sin City – A Cidade do Pecado”). Quando, em dado momento do filme, Randy diz que os anos 90 foram um saco, o significado aí é bem mais pessoal que o da própria cena.

Siegel e Aronofsky tomaram o cuidado de criar uma ambientação realista na qual Randy se insere, além de colocar uma ligação entre o arco narrativo dele e de seu interesse amoroso, a stripper Cassidy (Marisa Tomei). Ambos usam nomes falsos em seus respectivos trabalhos e estão começando a sentir o fator “idade” atrapalhando em seus ofícios nada comuns. No entanto, Randy adora o que faz e se sente pouco a vontade quando chamado por seu verdadeiro nome, Robin. Já Cassidy mal vê a hora na qual poderá assumir a identidade da mãe de família Pam em tempo integral.

A relação entre os personagens jamais soa forçada, sendo construída pouco a pouco em diálogos fenomenais, com os sentimentos dos dois sendo desnudados em frente à platéia aos poucos, inclusive (e principalmente) nos momentos de desilusão. Por falar em diálogos, muita atenção a eles, que sempre mostram muito do simbolismo do filme. Um que pode passar despercebido pela maioria começa quando Cassidy fala sobre o filme “A Paixão de Cristo” e o sofrimento de Jesus Cristo ali, em duas horas de tortura em prol da humanidade, enquanto Randy passa por algo muito parecido todas as semanas pela diversão de sua platéia, chegando ao ponto da auto-mutilação, expondo o paralelo entre o “cordeiro de Deus” e o Carneiro, apelido do lutador.

Após ser obrigado a se afastar dos ringues, Randy tenta remendar o que restou da sua vida, tanto tentando criar um contato mais pessoal com Cassidy/Pam, bem como reestabelecendo um vínculo com sua filha, Stephanie (Evan Rachel Wood). Este terceiro núcleo do filme, o da relação pai/filha, é o mais curto, mas também um dos mais fortes, já que é o mais emocional em relação ao público. Em apenas três cenas, Rourke e Wood passam para o público uma química e uma mistura de amor e repulsa incrível, na qual é impossível não se envolver. E é impressionante que, nestes poucos minutos nos quais os dois atuam juntos, eles consigam causar tamanha reação junto à platéia.

Mas, com certeza, a sequência mais dolorosa do filme é aquela na qual Randy tem de encarar sua vida como uma pessoa comum. Não é a toa que aquele homem foge de um contato direto com o público em sua vida como Robin. Ser apontado como a pessoa que já foi alguém é a sensação mais dolorosa que qualquer um que já foi especial pode sentir. Aqui, novamente, há um paralelo entre ator e personagem, já que esta situação já foi experimentada pelo próprio Rourke. A compreensão da dor sentida pelo protagonista neste momento é essencial para a compreensão do longa como um todo.

À primeira vista, pode-se comparar a história de “O Lutador” com a do recente “Rocky Balboa”. Isso seria um erro, já que o realismo e crueza do primeiro eclipsam o tom de fábula otimista do segundo (que eu também adoro). No entanto, há um paralelo interessante a ser feito entre os dois filmes. Enquanto a hexalogia “Rocky” concede um tom de fantasia otimista à história de seu protagonista, um praticante de um “esporte real”, vemos com um realismo atormentador a trajetória de Randy, um ex-astro da “falsa” luta-livre, uma modalidade com cartas marcadas. Randy é um artista, que sofre por sua arte e que não se sente completo e feliz a não ser quando está no ringue e vê o público como sua verdadeira família.

Uma das melhores coisas que o diretor Darren Aronofsky fez aqui foi filmar esta fita de um modo quase documental. Sua câmera basicamente segue Randy em todos os momentos, mostrando o seu dia-a-dia, seja como um lutador decadente (no primeiro ato do filme) ou como um ser humano medíocre tentando se afirmar (durante o segundo ato do longa). Aronofsky sabe que esta é uma história trágica e que dar qualquer ar de drama a mais para ela a deixaria fora do tom, por isso deixa que as imagens e a própria trama falem por si, interferindo o mínimo possível, com vários planos longos e fechados.

Até a própria trilha sonora, em uma nova colaboração entre Aronofsky e o compositor Clint Mansell, não está lá por acidente. Ela desempenha papel fundamental na trama, já que não serve apenas para pontuar os momentos nos quais a platéia tem de se emocionar, mas sim participando do filme como um elemento ativo deste, funcionando até como um indicador do estado de saúde do protagonista.

É mais do que apropriado que a bela e tocante canção “The Wrestler”, composta para o filme por Bruce Springsteen, toque apenas nos créditos finais, pois é o momento para a platéia ouvi-la e refletir sobre o que acabou de testemunhar. Por falar em músicas, os fãs do bom rock dos anos 1980 vão adorar as escolhidas para a fita, todas inseridas de modo bastante orgânico à fita, e se deliciar com um diálogo entre Randy e Cassidy sobre bandas oitentistas.

Os cenários do filme lembram muito os de “Réquiem Para um Sonho” que são brutos e, às vezes, quase sem vida. Mesmo cenários mais coloridos, como o decadente clube de strip-tease e as arenas onde Randy combate, possuem uma certa melancolia, uma tristeza, ressaltada pelo granulado da fotografia de Maryse Alberti que, não por coincidência, tem muita experiência com documentários.

Em seu filme mais simples, Aronofsky mostra que complexidade não é sinônimo de qualidade. “O Lutador” pode até não ser o melhor longa na curta e belíssima filmografia do cineasta, mas aqui ele conta como ninguém uma história tocante, feita com o elenco certo e na hora certa. Recomendado e não só pela brilhante e justamente elogiada atuação de Rourke, mas sim pela brilhante fita que a produção se mostra.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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