Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 25 de novembro de 2006

Fonte da Vida

Um filme que ativa consideravelmente bem a maioria dos seus sentidos. Tamanha competência na parte técnica, aliada a um roteiro inteligente e muito complexo, faz de "Fonte da Vida" um filme brilhante.

É sempre bom entrar em uma sala de cinema para assistir a determinado filme sabendo mais ou menos quem é quem. É valioso saber que projeto cinematográfico esse diretor já fez, como se saiu, qual seu estilo, como também é importante saber quem escreve. Tudo isso para que, com o passar do filme, você saiba o porquê de determinados elementos estarem ali sem ter que descobrir na hora, ficar perguntando a alguém, ou ficar realmente perdido. Essa de não saber a priori ao que está sendo submetido pode criar uma opinião um pouco sem coerência. Sendo assim, vale dizer quem é Darren Aronofsky ("Réquiem Para Um Sonho"). O diretor é conhecido pelos seus filmes julgados como "sem pé, nem cabeça", mas que, para os olhares atentos aos campos minuciosos do longa, tem muito sentido. Não é, com certeza, um diretor fácil de se assistir. Ele enche os filmes de simbologias e se você não dominar muito bem isso, vai, com certeza, se perder até mesmo antes do projeto chegar em seu final. Resumindo: os filmes de Darren não são para qualquer um. Conseqüentemente, "Fonte da Vida" está longe de ser para qualquer um.

Tudo é muito complicado! Até fazer uma sinopse para o filme torna-se difícil. Por mais que eu escreva qualquer coisa aqui, terei que deturpar o assunto, pois estaria estragando muito de sua trama. Mas, para que o futuro espectador não se perca, é assaz importante saber que o filme não tem uma história linear. Ele pula entre momentos, tempos e locações de instante em instante. Em uma simples distração para abrir um saco de pipoca, você se vira e pergunta-se: "Ahn? O que houve para estar tudo assim?" Nem pense, porém, que o filme vai explicar o que houve mais tarde. Quem viu, viu, quem não viu, deixa para próxima. Tudo isso porque o filme é quase um amontoado de três histórias, com praticamente o mesmo personagem e a mesma trama central, a busca da proximidade de Tomas (Hugh Jackman, o Wolverine de "X-Men") diante de sua amada Isabel (Rachel Weisz, de "O Jardineiro Fiel").

A história pode parecer um dramalhão de novela, em que o galã vai atrás de estar sempre próximo à sua querida e amada esposa, que julga ser o amor da vida. Realmente é isso, mas o filme não se mostra assim. Isso está aí para quem quiser aceitar o simples, mas são as entrelinhas, cheias de simbologias e referências a doutrinas religiosas e outras coisas mais, que fazem o longa ganhar sua magnitude e reconhecimento de, como disse antes, um filme brilhante.

A condução do diretor e roteirista Darren Aronofsky é de delicadeza impecável. Tudo feito com muito carinho para ganhar a simpatia do espectador. É tanto que, sem quase perceber o tempo passar, o filme chega ao seu final de forma realmente satisfatória. É fácil se envolver com o roteiro do filme, até mesmo ele sendo non-sense como muitos rotulariam. Alguns desses que, por o filme não buscar uma história que "joga" com a realidade, acabam não aceitando, mas para quem está acostumado com esses tipos de produção o filme flui tão bem quanto água descendo a garganta de alguém que está sendo submetida ao sol caribenho ao meio-dia.

Para tanto brilhantismo, as atuações não poderiam passar batidas. Entra em cena o talento impagável de Rachel Weisz e o surpreendente Hugh Jackman. Ela está simplesmente magnânima o filme todo. Uma cena em que ela representa duas personagens diferentes, porém interligadas, em diferença de segundos, mas dizendo a mesma frase com as duas (?!) vê-se todo o talento que a moça tem. Além do mais, como ela consegue chorar e rir ao mesmo tempo tão facilmente! A atriz está tão bem de certa forma que apaga Hugh Jackman quando este está próximo. No filme, vê-se um Jackman muito maduro disposto a deixar claro que não são os seus músculos que farão dele um ator muito permanente em um cenário principal no mundo cinematográfico. Apesar de, em termos comparativos, ele não se sair tão bem quanto Rachel, o rapaz faz um trabalho quase impecável. E olhe que não foi coisa pouca, visto que o filme gira praticamente todo em torno dele e ele tem de fazer três personagens diferentes ao longo da história. Ele careca, sozinho em cena, é algo fora de série. Vale muito observá-lo criteriosamente. Completam o elenco com pouco tempo de destaque Ethan Suplee (do seriado "My Name is Earl"), Ellen Burstyn ("Réquiem Para Um Sonho") e Sean Patrick Thomas ("Halloween: Ressureição").

Outros fatores são importantíssimos para o sucesso do carisma do filme. A trilha sonora é o principal. Explique-me como, com tanta singeleza, uma pessoa consegue tamanho sucesso! Do começo ao fim, a trilha, somente instrumental, está bem postada e faz a audição ficar aguçada nas horas certas. Sem falar também na fotografia e no figurino. A mesma singeleza deixa o filme leve e simples, pois toda a complexidade fica por conta do roteiro de Darren Aronofsky e Ari Handel.

O melhor do filme, muito particularmente falando, é que ele não se faz didático. Se você não entendeu determinadas passagens, ou isso, ou aquilo, não é ele quem vai explicá-lo com um final todo mastigado. Você que pare, pense e, se preciso, assista de novo. Não é um filme de fácil "digestão", em face de tantas referências a doutrinas cristãs, espíritas e budistas que o filme prega do começo ao fim, muita simbologia e uma falta de temporalidade definida. Quem não vai com a mente sã, então fica pensando em algo durante o filme, acaba se perdendo e sai com a sensação de não ter entendido nada. O bom é isso. Se você não prestar atenção do começo ao filme e nos mínimos detalhes, acaba, fatalmente, acontecendo isso.

Não é uma boa pedida se o seu caso é relaxar com uma história bonitinha e simples. Todavia, é uma das melhores pedidas caso você queira ficar refletindo bastante ao término singelo do filme. É incrível como a simplicidade na medida certa da parte técnica, aliada a uma complexidade surpreendente do roteiro, tornam "Fonte da Vida" um filme difícil de ser esquecido.

Raphael PH Santos
@phsantos

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