Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 09 de outubro de 2009

Anticristo

Ao final dos créditos do mais novo filme do cineasta dinamarquês Lars Von Trier, ele novamente nos faz pensar. Dessa vez o que me veio em mente foi o seguinte: até que ponto pode ir a insanidade humana? Mas justamente nesse pensamento reside uma ambiguidade: estaremos nos referindo ao filme ou ao diretor?

Von Trier tem o costume de polemizar, mas sempre com fundamento, é claro. Em “Dogville”, ele consegue nos pôr sentados na poltrona sem reação alguma até, no mínimo, o final dos belos créditos. Com “Manderlay” foi o mesmo. Aqui é caso reincidente. “Anticristo” é um tipo de filme que qualquer diretor não faz. É muito frio, cru, sombrio. É muito Dogma 95. É muito Von Trier. É incrível como ele consegue deixar claramente sua marca.

Perguntas básicas antes de começar: o filme poderia ser melhor? Sim, poderia. Poderia ter mais violência, talvez. Tudo bem que o pessoal ficou horrorizado em Cannes, mas para um escolado no cinema de Tarantino, aqui só é um pouco mais realista. Poderia ser menor? Sim, poderia. Poderia ter mais suspense? Sim, poderia. E isso tudo afeta o desenvolvimento da história? De forma alguma.

O longa mostra a história de um casal representado por Ele (Williem Dafoe) e Ela (Charlotte Gainsbourg), que perde seu único filho em um acidente doméstico e ambos ficam surtados. O sentimento de culpa devora o relacionamento deles, e Ele, que é um psicanalista centrado, vai com Ela para uma cabana em uma floresta, onde poderiam estar a sós e tentar recuperar o equilíbrio emocional.

Algo que se pode destacar é a mão milagrosa de Von Trier para dirigir atores. Nicole Kidman foi uma monstra em “Dogville”. Björk comoveu em “Dançando no Escuro”. E agora Charlotte Gainsbourg foi simplesmente arrebatadora em sua interpretação nesse filme. É tão eficiente que ela leva o filme facilmente e rouba todas as cenas. O estado de depressão e culpa apresentado por ela é indescritível. Comovente. Doentio. Oscar.

Williem Dafoe, ator que não tenho alguma simpatia, consegue ser um contraponto bacana para o longa. Ele atua de maneira simples, porém eficaz. Assim como Gainsbourg, se expõe bastante e consegue ter uma efetiva química com a parceira. Ele demonstra força em seu personagem, que está desconstruído, de luto, em uma relação decadente, mas que ainda assim tenta responder por si mesmo e por outros.

Von Trier certa vez disse que o trabalho no longa não foi prazeroso de nenhuma forma e que o roteiro era escrito durante as filmagens, de maneira bastante infeliz. Isso se reflete no filme, seja em qualquer um dos aspectos. A fotografia é bastante sombria, na qual sobressaem imagens mais vivas como se brilhassem em meio a escuridão. O roteiro é enxuto e construído da maneira mais incidental passível. A trilha é de uma única canção. Convivemos com a dor, com a teologia, com o caos.

A direção e a atuação de Gainsbourg são os grandes trunfos do filme. O estilo de direção adotado por Trier, que se firma nas normas do Dogma 95, se encaixa aqui tão bem quanto nas suas outras obras. A estética empregada é trabalhada de forma bela, a câmera de mão traduz os sentimentos dos personagens e os cortes abruptos na edição só aumentam o clima de suspense. Inclusive, faz-se de extrema importância ressaltar o prólogo da película que, filmado de maneira excepcional pelo diretor, é uma das cenas mais bem feitas ultimamente.

“Anticristo” é um filme difícil de ser classificado. Talvez ele devesse investir mais no desenvolvimento da própria história bizarra que ele inventou, mas opta sabiamente na essência do ser humano. O longa é forte e claustrofóbico, mas a mente genial e excêntrica de Von Trier pensaria em algo ainda mais impactante. Sendo assim, o filme é um olhar introspectivo e uma experiência sensorial, que de alguma forma nos impede de sair indiferente ao que foi visto. Na verdade, acredito que “Anticristo” não deveria ser classificado apenas como filme, mas como estado de espírito.

Amenar Neto
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