Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 08 de julho de 2009

Minha Vida Sem Mim

Mesmo tratando de um tema pesado, com personagens propositadamente dotados de forte carga dramática, o drama “Minha Vida Sem Mim” é construído de forma moderada e sutil. O roteiro, até então nada especial, ganha contornos mais amplos calcado na sensibilidade das interpretações e no olhar da diretora Isabel Coixet, que leva o espectador a uma jornada de questionamentos em relação à vida e à morte, mas sem ser gratuito.

Em um dia você está bem; no outro, recebe a notícia de que sua vida tem dia e hora para acabar. O que fazer então? Essa é a pergunta que Ann (Sarah Polley), uma jovem de 23 anos, faz a si mesma ao descobrir, após um mal-estar, que um câncer no ovário se alastrou para o fígado, lhe dando no máximo três meses de vida. Contrariando o óbvio, ela opta por um caminho pouco convencional: não conta a ninguém sobre sua doença e faz de uma lista, a motivação para aproveitar seus últimos momentos.

Lidar com a possibilidade da morte não é uma coisa fácil, seja na vida real ou no cinema a perda é sempre brutal e dolorosa. Sempre relacionada a algo assustador e soturno, em “Minha Vida Sem Mim”, a diretora Isabel Coixet reveste a morte com uma áurea mais suave e até mesmo romântica, sem esquecer a realidade.

Ann ganha a vida como faxineira noturna, mora em um trailer no quintal da casa de sua mãe (Debbie Harry) e vive feliz, apesar das dificuldades, ao lado do marido Don (Scott Speedman) e das duas filhas pequenas. Saber que está prestes a morrer abre para ela uma oportunidade de realizar desejos e sonhos esquecidos, seja por falta de oportunidade ou mesmo, coragem. Entre as suas “coisas para fazer antes de morrer” está dançar na chuva, fazer amor com outro homem que não seja o marido, arrumar uma esposa para ele, ir visitar o pai na prisão, dizer o que pensa e gravar mensagens de aniversário para as filhas. É a partir da realização dessa lista, que ela começa a pontuar como será a vida dela, sem ela.

Aos poucos, Ann vai realizando seus objetivos e seguindo com sua rotina. Um dia conhece um homem triste, assim como ela, e com ele descobre a paixão, outro tipo de amor que não tem com o marido. Lee (Mark Ruffalo) é um homem machucado e introspectivo, a imagem do poeta romântico que desiste de viver por causa de uma relação não correspondida. Sua solidão é visível não apenas no aspecto emocional, mas principalmente no plano físico, já que vive em uma casa sem móveis e de paredes descascadas.

Em “Minha Vida Sem Mim”, temos a impressão de que todo mundo é triste, já que a felicidade mostrada é sempre como um sentimento de conformismo, de rotina. Não há um só personagem realizado, todos pressupõem uma sina, um desejo incompreendido, um sonho desfeito, uma insatisfação. Nesse ponto é importante pontuar o trabalho da fotografia, de Jean-Claude Larrieu, e da direção de arte, de Carol Lavallee, na utilização da luz e da cor na construção dos personagens, tudo de forma a dar coesão ao contexto visual.

Ao mesmo tempo em que vive um romance com outro homem, Ann prepara o terreno para que a vida siga bem sem ela, transformando o presente (dando sentido à vida de alguém), preparando o futuro (arrumando a sua família) e remendando o passado (na relação com os pais). É bonito e ao mesmo tempo doloroso ver que suas escolhas provocam transformações não apenas nela, mas em todos à sua volta, sejam imediatas ou não.

Mesmo sabendo que não está destinada a grandes coisas, ela quer deixar sua marca no mundo, nas pessoas, quer ter aquela sensação de que sua vida não foi em vão. Ann é uma moça simples, tolida pela vida, pelas suas escolhas, pela gravidez indesejada, por um casamento precoce, pela perda o convívio do pai (Alfred Molina), pela amargura da mãe, pela ingenuidade dela mesma. E então se dá a mágica da identificação com a trama, por que não dá para ficar indiferente aos paradoxos cruéis da vida.

Coixet trabalha com os arquétipos de forma brilhante, seja na figura da mãe, do pai, do amante Lee, da melhor amiga (Amanda Plummer) e da própria protagonista. Ela é a adolescente resignada, o marido é o ingênuo, o amante significa a fantasia, a mãe é a eterna bruxa má do Oeste. Sara Polley é a espinha dorsal da fita, responsável por seus mais belos momentos e criando um equilíbrio entre a relação com Speedman (excelente) e Ruffalo (soberbo). Como brinde, o público ainda recebe a excelente performance da ex-Blondie Deborah Harry como mãe da protagonista, uma mulher amargurada e queixosa, e Alfred Molina, sempre competente com um pai ausente em busca do amor tardio de sua única filha.

O drama é baseado no conto “Pretending the Bed is a Raft”, de Nancy Kincaidv, e levou meses escolhendo e preparando o elenco do filme, e cercando-se de bons profissionais. Apoiado pela produção mais que especial da El Deseo (de Agustín e Pedro Almodóvar) e talvez pela influência do mestre, o filme seja pontuado de belíssimas referências cinematográficas, principalmente na cena em que cenas do filme “Almas em Suplício” (1945) aparecem como pano de fundo de uma discussão entre Ann e sua mãe. Ou ainda a homenagem a “O Pescador de Ilusões” (1940), na sequência do supermercado, tão bem conduzida ao som da canção “Senza Fine", de Gino Paoli.

“Minha Vida Sem Mim” é um filme que acorda, que desestabiliza, que nos diz o quanto somos impotentes e um pouco paranóicos com relação a muitas coisas na vida. Desmistifica um pouco a morte e mostra que a vida não precisa ser tão cheia de seriedade ou tão cheia de comédia para ser vivida. O interessante é que todas as reflexões são passadas de forma comovente, às vezes triste, sem lições de moral, sem sermões infinitos, às vezes metaforicamente, outras não. E enquanto a protagonista vai morrendo, ela vai descobrindo a vida, assim como o espectador. Tudo nos leva a uma jornada de questionamentos, a uma revisão de nossas prioridades e a perceber, que mesmo com ou sem a nossa presença, a vida continua.

Debora Melo
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