Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 27 de março de 2009

Escafandro e a Borboleta, O

O novaiorquino Julian Schnabel realmente surpreendeu a todos com esta verdadeira obra de arte chamada "O Escafandro e a Borboleta", sendo merecedor do prêmio de melhor direção que ganhou em Cannes.

O diretor, conhecido também (e principalmente) por seu trabalho como pintor neo-expressionista, deu o seu ponto de vista peculiar à fantástica história de Jean-Dominique Bauby (Mathieu Amalric), antigo editor da Revista Elle francesa que, após sofrer um derrame cerebral e passar semanas em coma, acorda totalmente paralisado, em um estado aparentemente catatônico para quem o vê. Porém, interiormente, ele se encontra lúcido e consciente, um caso raro chamado de “Sindrome Locked In”, ou seja, “trancado dentro”. A única forma de comunicação de Bauby era através de seu olho esquerdo (o direito foi costurado), e com ele ditou silenciosamente seu tocante livro "Le Scaphandre et le Papillon" para sua assistente Claude (Anne Consigny), sendo na época uma obra muito bem recebida pela crítica especializada.

O filme começa no momento em que Bauby acorda de seu coma. Ele está confuso e ainda não sabe de sua imobilidade e incapacidade de comunicação. Filmado em primeira pessoa, Schnabel nos coloca literalmente na pele do personagem, para o bem e para o mal. A primeira vez que assisti ao longa, lembro de ter achado a sensação tão claustrofóbica que tive medo de que o filme fosse todo filmado daquela forma, conturbado, com ângulos recortados, iluminação estourada, borrões e lampejos de uma pessoa que se tornará apenas uma consciência, uma voz em sua cabeça, e teria de aprender a conviver com isso.

Vemos então a genialidade do diretor em meio ao caos. Schnabel vai revelando seu protagonista aos poucos, saindo de trás dos olhos de Bauby, mas nunca focando o físico de seu personagem, para que na hora que sua atual fisionomia seja revelada (o que acontece após pouco mais de 40 minutos de filme), já conheçamos profundamente seu caráter psicológico, e daí então começaremos a conhecer pequenos momentos de sua vida que exemplificam muito bem que tipo de pessoa era ele antes do acidente.

Schnabel faz questão de enfatizar tudo o que Bauby estava perdendo em sua condição: a praia que não poderia aproveitar com seus filhos; a beleza feminina destacada com uma sutileza incrível criando tensão e fetiche ao mostrar, com seus recortes de imagem, a beleza das mulheres que cercam Bauby, com seus cabelos, tornozelos, bocas e olhos, que estão sempre em destaque (os pensamentos do personagem sobre essa “injustiça” são de um bom humor impagável). Também vemos a dificuldade e tristeza contida na impossibilidade da comunicação, muito bem retratada na conversa ao telefone entre Bauby e seu pai Papinou (Max Von Sydow), intermediada por sua fisioterapeuta Henriette Durand (Marie-Josée Croze) uma das beldades que ajudava em seu tratamento.

Com uma montagem impecável, a edição final do filme seria impossível sem suas cenas minuciosamente planejadas. O que se destaca no estilo do diretor é sua inteligência e criatividade na hora de criar soluções, que em sua maioria funcionam de forma simples e muito eficaz. Tudo é feito de forma totalmente coordenada para não perder o foco, mas aparentando um caráter discrepante, como por exemplo, a iluminação que é por muitas vezes fora da realidade das cenas e que tem entre seus elementos a utilização da água, que cria um aspecto estilizado e ondulante, remetendo a umidade de um olho constantemente aberto. Aliás quase todas as soluções para o quesito “olho” são fantásticas, como quando ele é costurado e temos a visão privilegiada do interior de sua pálpebra, ou então quando de repente tudo se borra, ficando desfocado, e descobríamos que Bauby está chorando diante de sua ex-mulher.

O roteiro é de Ronald Harwood, que tem excelentes filmes no currículo, como "O Pianista" de Roman Polanski. Baseando-se no livro original de Bauby, Harwood dá conteúdo a um personagem verossímil, inteligente e muito carismático, que ao contrário de seu corpo, tem sua mente liberta como uma borboleta, mas enfrenta uma solidão acompanhada… Arrastada… Como o pesado traje de mergulho que simbolicamente aparece trajando no isolado fundo do mar.

Dono de uma beleza única, o filme trata com muito respeito está história real e surpreendente de um homem que dedicou todas suas forças finais para construir algo que o fizesse ser lembrado. O escritor, que aos olhos de alguns não passaria de um incapaz, cumpriu o desafio de compor seu livro como o relato de uma missão, e logo após terminar, se livrou do escafandro que o prendia. O que havia desmoronado se reergueu, assim como as grossas camadas de gelo que retrocedem como por milagre na poética cena final.

Ronaldo D`Arcadia
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