Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 17 de fevereiro de 2008

Indomáveis, Os

Assim como grandes produções baseadas apenas em desenvolvimento de personagens, faroestes são obras em extinção no cinema atual. No entanto, o diretor James Mangold entrega com este "Os Indomáveis" um longa que se encaixa no conceito destes dois tipos de filme. Ancorado em performances brilhantes de seu elenco, esta adaptação é um orgulhoso exemplar de um western da velha guarda e do cinema de qualidade.

Atualmente, a indústria cinematográfica tende a menosprezar a importância dos atores. Com produções como "A Lenda de Beowulf" nas quais nem câmeras são utilizadas, são raros os exemplos de filmes hollywoodianos que têm em seus intérpretes seus maiores trunfos, não os efeitos especiais miraculosos, cenas de ação mirabolantes ou algo do gênero. Felizmente, em 2007, tivemos diversas fitas que quebraram este triste paradigma, tais como "Conduta de Risco", "Juno" ou "Sunshine", longas incrivelmente diferentes entre si, mas cuja considerável força jaz nos intérpretes vistos na tela. Chegando um tanto atrasado aos cinemas brasileiros, mas entrando com louvor nesta lista, este brilhante "Os Indomáveis" é um filme que retoma a tradição dos Westerns de outrora em toda a sua forma, de modo que faria Sergio Leone sorrir.

O longa é uma adaptação para o cinema da história curta "3:10 to Yuma", escrita por Elmore Leonard. Essa já fora levada anteriormente para as telas em 1957, em "Galante e Sanguinário", fita dirigida por Delmer Daves e estrelada por Van Heflin e Glenn Ford como Dan Evans e Ben Wade, respectivamente. Nesta nova versão, Christian Bale ("Batman Begins") e Russell Crowe ("O Gângster") assumem os papéis principais da produção.

A trama mostra Evans, veterano da Guerra Civil que perdeu uma de suas pernas, em uma maré de azar. Pai de família e contando com sua fazenda para se sustentar, ele se vê atolado em dívidas, graças ao período de seca, estando perto de perder suas terras. Tendo de lidar com a rebeldia de seu filho mais velho (Logan Lerman, "O Número 23") e com a doença de seu caçula (Benjamin Petry, "Suspeito Zero"), ele mal consegue encarar sua esposa (Gretchen Mol) no olho, por achar ter falhado com esta.

Enquanto isso, do outro lado do espectro, está Ben Wade, líder de um temido bando conhecido por seus assaltos a diligências. Sem clemência para com seus inimigos ou comparsas que falhem em seu "ofício", ele parece o típico bandido que é o mal encarnado. No entanto, há muito mais em Wade que possamos imaginar à primeira vista. Após este ser eventualmente apanhado por homens de uma companhia "prejudicada" por ele, é oferecida uma recompensa para aqueles que se dispuserem a colocar o perigoso bandido no trem para a prisão de Yuma.

Vendo aqui uma chance de salvar sua fazenda, Evans, que já havia cruzado com Wade duas vezes neste mesmo dia, resolve ir, vendo no serviço uma solução para seus problemas financeiros mais imediatos. No entanto, o resto do bando do capturado, encabeçado agora por Charlie Prince (Ben Foster, de "Alpha Dog"), fará tudo para resgatar seu líder e este é apenas um dos obstáculos no caminho de Evans e os outros membros do seu comboio.

O que torna "Os Indomáveis" um longa imprescindível para qualquer apreciador da sétima arte é o natural e cadenciado desenvolvimento de seus personagens, principalmente do estranho laço que surge entre seus protagonistas no decorrer do filme. À medida que descobrimos os motivos que levam Dan Evans a aceitar este serviço e ansiar tanto continuar em suas terras, mesmo em tempos de seca, mais compreendemos sobre seu personagem.

Christian Bale nos mostra o forte senso de moral do qual o personagem é dotado, fazendo questão de sempre nos lembrar a importância, não apenas financeira, de Evans ter de levar Wade àquele trem. A luta de Evans não é só pelas suas terras ou por sua família, mas também para provar sua hombridade e que seus valores contam para alguma coisa, algo que seu filho e ele mesmo já colocaram em cheque há algum tempo.

No entanto, a despeito de ser o "bandido" da história, é em Ben Wade que está boa parte dos ingredientes que tornam o filme tão fascinante. Carismático e altamente inteligente, ele é um personagem altamente complexo e o desempenho de Russell Crowe está à altura do desafio. Sua figura, sempre altiva, chama a atenção da platéia de imediato, algo que a própria persona cinematográfica de Crowe consegue ressaltar ainda mais. Wade é um personagem, no mínimo, enigmático. Um artista talentoso e alguém que sabe versos da Bíblia de cor não é o seu típico vilão.

Apesar de ter matado uma boa quantidade de pessoas, ele dá valor a vida, mostrando que possui certo código de ética. Em certo momento da projeção, os crimes do personagem são listados e ele responde que as vidas que tirou não foram mencionadas. Nenhuma qualidade que o redima poderia vir de Wade enquanto ele estiver com o seu bando, já que estas seriam consideradas uma fraqueza, mas o que acontece quando ele se aproxima do nobre e abnegado Evans?

O elenco coadjuvante também não desaponta. Ben Foster encarna o fiel escudeiro de Wade, Charlie Prince. A devoção quase cega que Charlie tem para com seu chefe é a principal característica do personagem, levando-o a cometer atrocidades mil e a arriscar o resto do bando. Isso é algo que ele mesmo sabe que Wade jamais faria por ninguém do grupo, nem mesmo por ele, o que nos leva a considerar qual a origem da fascinação de Charlie para com Wade.

Este mesmo fascínio começa a percorrer a cabeça de William Evans. Interpretado com segurança pelo jovem Logan Lerman, William não consegue se enxergar no combalido pai, vendo em Wade um espelho de sua rebeldia e desejo de conquista, Em sua imaturidade, o adolescente inveja a liberdade que a vida bandida acarreta.

Também se destacando temos o carismático Alan Tudyk ("Morte no Funeral"), cujo trabalho tenho admirado desde sua participação da série "Firefly". Seu personagem, o Dr. Potter, é o que se pode chamar de peixe fora d'água, tendo caído meio que sem querer no comboio de Evans. Responsável por trazer algum humor ao filme, Tudyk consegue fazer isso sem com que sua performance acabe destoando do resto do elenco.

A bela Gretchen Mol consegue trazer profundidade a Alice Evans, mesmo com o pouco tempo de cena que possui. Em duas cenas particularmente intensas, a atriz mostra uma grande carga dramática e a sua química com Bale e Crowe é simplesmente hipnotizante, sendo uma pena que sua participação dure tão pouco. Quem também deve ser mencionado é o veterano Peter Fonda, que participa aqui como o caçador de recompensas Byron McElroy, velho perseguidor de Wade. Em sua curta participação, Fonda consegue limpar o gosto ruim de suas últimas aparições no cinema (vide "Motoqueiro Fantasma" e "Motoqueiros Selvagens").

O versátil diretor James Mangold consegue marcar com sucesso sua passagem por outro gênero do cinema. Já tendo trabalhado em comédias românticas, ("Kate & Leopold"), suspense ("Identidade") e, mais recentemente, por um drama musical biográfico ("Johnny & June"), Mangold mescla sua originalidade própria com os elementos clássicos dos westerns, criando uma obra ímpar. O cineasta investe em enquadramentos visualmente interessantes ao mesmo tempo em que consegue fazer com que a história flua com naturalidade, jamais colocando o estilo antes da narrativa, o que é uma virtude rara hoje em dia. Além disso, ele extrai o melhor de seu elenco, não sendo por nada a indicação do grupo ao prêmio do sindicato dos atores (SAG).

Mangold reuniu uma equipe técnica de primeira linha para o filme. O diretor de fotografia grego Phedon Papamichael, velho colaborador do cineasta, captura bem o clima do oeste selvagem americano, se utilizando de cores fortes. O trabalho de Papamichael se sobressai nas cenas noturnas do filme, especialmente bem iluminadas e muito bonitas de se assistir.

Por sua vez, o editor Michael McCusker coloca o filme em um ritmo rápido, conseguindo impor um clima de tensão constante ao espectador. Já Marco Beltrami realiza um trabalho absolutamente fantástico com a trilha sonora do filme, fazendo por valer sua indicação ao Oscar e tornando "Os Indomáveis" um daqueles casos clássicos de "veja o filme e compre a trilha".

Com um roteiro que equilibra os bons e velhos tiroteios típicos do gênero com um brilhante desenvolvimento de personagens ao decorrer da projeção, "Os Indomáveis" não é indispensável apenas paras os fãs de Western, mas também para aqueles que apreciam o bom cinema.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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