Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 17 de julho de 2007

Harry Potter e a Ordem da Fênix (2007): tecnicamente impecável

No mais político e explosivo exemplar da saga do jovem bruxo, “Harry Potter e a Ordem da Fênix” leva o personagem-título a experimentar um verdadeiro caldeirão de emoções e a audiência a embarcar no melhor filme da série.

O mundo da magia não é mais o mesmo. Durante os quatro filmes anteriores, acompanhamos a animação e o entusiasmo do jovem Harry Potter em sair de uma existência banal e medíocre rumo a um mundo especial, repleto de significado, amigos e desafios. Como dizia aquele velho ditado, “só é divertido até alguém se machucar”. No final de seu quarto ano na escola de magia de Hogwarts, Potter viu um amigo, Cedrico Diggory, ser morto e ele mesmo quase ser liquidado por sua nêmese, o ressurgido Lorde Voldemort, escapando da morte por um triz. Harry finalmente percebeu que sua nova vida tem um preço e que as coisas só começaram a piorar. Neste quinto ano, o jovem bruxo não só terá de lidar com aulas de magia e com “a ameaça da vez”. O perigo agora é advem do medo no coração dos poderosos, no fanatismo dos inimigos e, pior ainda, na desconfiança justamente daqueles que ele deseja salvar. Hormônios e intrigas serão algumas das outras pedras nos sapatos do rapaz. Neste, que é o mais político e ambicioso filme da série até o momento, tudo irá mudar na vida do “menino que sobreviveu” e a guerra, que teve seu prelúdio no último ato do filme anterior, se inicia.

Pela primeira vez, um filme da série não é roteirizado por Steve Kloves, que cede o lugar para Michael Goldenberg, responsável pela ótima versão de “Peter Pan”, que chegou às telas em 2003. Goldenberg conseguiu comprimir o gigantesco texto do livro de J.K. Rowling em um roteiro mais enxuto, cortando várias sub-tramas e se concentrando na veia principal do original literário. Não apenas por conta do novo roteirista, mas a saga começa a mudar sensivelmente. As diferenças entre “Harry Potter e a Ordem da Fênix” e seus antecessores já começam a se mostrar logo na introdução da fita. Em uma seqüência incrivelmente tensa, não só conhecemos o estado emocional frágil em que o personagem-título (Daniel Radcliffe) se encontra, mas temos uma das cenas mais assustadoras da saga até o momento, com o ataque de dementadores ao protagonista e a seu fútil primo “trouxa” Duda. Sendo obrigado a recorrer à magia pra salvar a própria vida e a de seu parente, Harry acaba sendo expulso de Hogwarts pelo Ministério da Magia. Descobrindo que a situação no mundo dos bruxos está indo de mal a pior, dada a recusa do Ministro Fudge (Robert Hardy) em reconhecer o retorno de Voldemort, ele e o Prof. Dumbledore (Micheal Gambon) são alvos de uma campanha maciça da mídia, orquestrada pelas figuras políticas no poder, para desacreditá-los junto ao público.

Mesmo após ser reintegrado a Hogwarts, o lugar ainda não é seguro para Harry, graças a crença dos alunos quanto a veracidade da história oficial e à presença nada bem-vinda de Dolores Umbridge (Imelda Staunton), nova professora de Defesa Contra Artes das Trevas que, além de não ensinar nada útil aos alunos, é completamente devotada a “doutrina Fudge”, chegando ao ponto de torturar aqueles que desacatem suas várias imposições – independentemente da idade do transgressor – e ganha, graças ao paranóico Ministro, cada vez mais poder dentro da instituição de ensino. Sabendo da batalha vindoura e dos riscos que todos irão correr, Harry e seus amigos Rony (Rupert Grint) e Hermione (Emma Watson) montam um grupo de estudo secreto para tentar passar aos outros estudantes tudo aquilo que eles aprenderam em suas batalhas anteriores. Ainda somos apresentados à Ordem da Fênix, uma equipe de bruxos, liderados por Dumbledore, que tem como objetivo acabar com Voldemort de uma vez por todas. Entre seus membros, está o padrinho de Harry e único familiar amado pelo jovem órfão. o impetuoso Sirius Black (Gary Oldman). Se isso ainda parece pouco, ainda vemos o relacionamento platônico de Potter e sua colega Cho Chang (Katie Leung) ganhar novos ares e somos apresentados a uma outra aluna da escola de magia, a avoada e carismática Luna Lovegood (Evanna Lynch).

Dado ao verdadeiro batalhão de atores que desfila pelo filme, fica realmente difícil para que haja destaques no elenco, mas eles existem. A começar pelo próprio protagonista, Daniel Radcliffe, cuja atuação vem melhorando absurdamente desde o início da saga. Encarnando um Harry bastante diferente desde os eventos do último filme, ele consegue exprimir a verdadeira sobrecarga de emoções pela qual seu personagem passa durante a projeção. Medo, raiva, ódio, frustração, amor, desejo e ternura são alguns dos sentimentos despertados pelas diversas provações pelas quais o jovem Potter passa e Radcliffe se sai muito bem em mostrar isso ao público. Seus companheiros de cena mais antigos e próximos, Rupert Grint e Emma Watson conseguem manter o bom nível das atuações do exemplar anterior da série, mas sem terem grandes momentos durante o filme. Michael Gambon continua impondo respeito e autoridade como o imponente Alvo Dumbledore e ganha sua primeira grande cena de ação, mostrando a força real do personagem. Voltando aos jovens atores, Matthew Lewis também merece ser lembrado, já que o atrapalhado Neville vivido por ele continua roubando as poucas cenas em que aparece. Ah, e preste bastante atenção todas as vezes em que Bonnie Wright aparece na tela, já que algumas das reações de sua Gina Weasley a determinados eventos dão dicas para o próximo filme. Os demais veteranos da série, em sua grande maioria consagrados atores britânicos, continuam dando um banho de interpretação quando o filme os enfoca, especialmente Gary Oldman, que simplesmente conquista a platéia com seu cativante Sirius Black.

Entre os novatos, ressalto a ótima atuação de Evanna Lynch, que concede uma aura toda especial a sua Luna Lovegoode, tornando toda aparição da (aparentemente) desligada personagem um deleite. Entretanto, o grande destaque vai para a absolutamente detestável Dolores Jane Umbridge, interpretada com maestria por Imelda Staunton. Cada risada, todos os gestos contidos e atos autoritários perpretados pela personagem são acompanhados por uma deliciosa – a assustadora – noção de sadismo que o trabalho da atriz inglesa transmite. Sendo uma pessoa absurdamente mal amada, cheia de manias, com um apetite para o poder e um fanatismo pela ordem igualmente desmedidos, ela é um dos maiores desafios que os alunos de Hogwarts já enfrentaram (e sim, eu me lembro do basilísco do segundo filme), justamente por possuir um poder hierárquico dentro da instituição.

Há uma cena genial entre Staunton, Micheal Gambon e as atrizes Maggie Smith e Emma Thompson (respectivamente as professoras Minerva McGonagall e Sibila Trelawney) que enfatiza todas as características negativas que Umbridge carrega consigo. Por várias vezes, ela me lembrou o Capitão Vidal, interpretado por Sergi López em “O Labirinto do Fauno”. Quanto aos grandes vilões do filme, é sempre ótimo rever o aristocratíco Lúcio Malfoy, vivido por Jason Isaacs com sua energia habitual. Porém, é uma pena que vejamos tão pouco de Helena Bonham Carter no filme, já que sua personagem, a lunática Belatriz Lestrange, só possui uma grande cena de destaque. Já o Voldemort de Ralph Fiennes, apesar de sua influência ser sentida durante todo o filme, torna a aparecer novamente em todo o seu esplendor somente no clímax da produção, mas a seqüência em que atua realmente vale a pena.

Quanto aos aspectos técnicos, vemos na tela o resultado de cada milhão de dólares gasto na série. O diretor David Yates, debutando em grandes produções, consegue, não apenas arrancas boas interpretações do seu gigantesco elenco, como cuidar muito bem de cada aspecto visual, atentando até mesmo para detalhes que serão importantes para os capítulos finais da saga. A direção de arte do filme é absolutamente impecável, conseguindo retratar com perfeição desde o gigantesco e imponente ministério da magia, até os subúrbios ingleses, passando ainda pela primeira grande aparição de Londres do modo com que os “trouxas” a vêem e a interessante interação entre os dois mundos. Melhor ainda é notar que até os tons de luz e cores do mundo “normal” diferem do mundo dos bruxos.

Além disso, o diretor de fotografia Slawomir Idziak consegue fazer um ótimo trabalho até mesmo em cenas escuras e repletas de efeitos visuais (algo dificílimo e que prejudicou a recente continuação de “Quarteto Fantástico”). Os efeitos visuais são, em sua maioria, espetaculares. Porém, mais uma vez a ILM teve problemas com criaturas de aspecto mais parecido com o humano. Apesar de conseguir esconder as falhas nos centauros em sombras e penumbras, o gigante Grope, que aparece com maior destaque que os seres de quatro patas, tem evidenciado seus defeitos, contando uma pele borrachuda e olhos sem vida que remetem ao trasgo de “Harry Potter e a Pedra Filosofal”. Dois profissionais que haviam trabalhado com David Yates em “A Garota do Café”, filme que colocou o diretor em destaque, foram trazidos para este quinto exemplar da série: o editor Mark Day e o compositor Nicholas Hooper. Enquanto Day parece ter tido alguns problemas trabalhando com o imenso material que tinha em mãos, resultando em uma narrativa não tão fluida como seria esperado, Hooper reinventa o estilo de trilha da saga, adicionando partituras mais rápidas e trabalhando pouco com o material dos filmes anteriores.

É bastante irônico que a maioria das dificuldades enfrentadas por Harry e seus amigos sejam advindas justamente daqueles que foram eleitos para defender e governar o mundo bruxo. Muitos verão em Cornélio Fudge e em Dolores Umbridge representações de governantes reais e eles não estarão equivocados. Alias, as várias imposições de Umbridge (retratadas em pergaminhos emoldurados em uma parede) me fizeram lembrar os famigerados Atos Institucionais que caracterizaram o período da ditadura militar aqui no Brasil. Independente disto, “Harry Potter e a Ordem da Fênix” surge como o melhor exemplar desta série que vem conseguindo apresentar, em cada um de seus capítulos, novos motivos para aguardarmos ansiosos o próximo. Novembro de 2008 ainda parece tão longe…

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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