Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 05 de abril de 2008

Magnólia (1999): o que podemos perdoar para, enfim, sobreviver nesse mundo?

"A ciência botânica tem um interesse especial pelas magnólias, que se acredita serem extremamente primitivas em relação a todas as outras flores..." - Trecho extraído do site Wikepédia.

Para quem não conhece, Paul Thomas Anderson (ou P. T. Anderson) iniciou no circuito cinematográfico mundial com “Hard Eight”, em 1996, trama que se desenrolava quase toda em um cassino em Las Vegas. O filme conquistou-me pelo jeito de contar de Anderson. Em seu primeiro filme, o diretor não criou um longa-metragem novo, se comparado a tramas ocorridas em Las Vegas e seus cassinos, mas havia algo de estranho no projeto. Algo incomum, que aqui tento colocar em uma palavra: Primitivo.

Posso arriscar dizendo que Anderson é um cineasta que prima pelo primata. Por nós todos, humanos, ainda que primatas, e vice-versa. Isso pode ser melhor entendido, em seu segundo trabalho, “Boogie Nights”, de 1997. Muito mais do que apenas um longa sobre o início da indústria pornográfica americana. O filme possibilitou-me enxergar P. T. Anderson como um fascinante cineasta autoral.

Teria alguma explicação para Mark Wahlberg (ex-garoto propaganda da marca Calvin Kline) transformar-se em ator em “Boogie Nights”? Justamente a explicação encontrei no elo primitivo que envolve a todos nós, e que Anderson tão bem consegue enxergar.

O sexo está em “Boogie Nights”, como em nenhum outro filme. Não é explícito no ato em si, nas cenas interpretadas por Wahlberg ou Julianne Moore. O sexo em “Boogie Nights” está na manifestação primata dos nossos atos. Seja no rapaz querendo reconhecimento de seus pais, em uma mãe, que usa das drogas para atenuar a falta da filha, ou na menina-patins, praticando muito sexo oral, demonstram todos uma carência de localização no mundo.

Enfim, observemos Magnólia. A flor dita extremamente primitiva em relação a todas as outras. Assistindo ao filme no cinema, contei 12 pessoas que saíram da sala escura. Talvez por isso. Pela escuridão, somada ao argumento primitivo de Anderson. “Magnólia” não é entretenimento de massa, não é produto, resultando em uma experiência tão intensa, que mesmo só a claridade de uma luz artificial de fora da sala para fazer esquecer o que lá dentro sentia. “Magnólia” incomoda, fala através de uma projeção imediata, um espelhamento. Percebemos que todos somos um. Aliás, “projeção” é outra palavra chave na filmografia de Anderson.

Desde aquilo que nós, primatas, criamos como palavras e seus sentenciados significados, até o fantástico (e suas reticências nunca explicadas) criado pelo homem, tentando ir além do primata, Anderson criou um novo testamento. Ainda bem, já que o velho não mais é tão citado, e o que conhecemos por novo, serve para pregação. “Magnólia” não prega, perfura.

Somos apresentados a um narrador, que bem pode ser o Criador de tudo. A voz que sempre fomos alertados de conversar, para sermos atendidos. O Criador – narrador apresenta histórias sobre “coincidências” (em aspas mesmo), pois, quando dito, o Criador – narrador tem em seu tom, timbre fatigado e incrédulo. Ao fim da última “coincidência”, ele, assim como todos nós, não acredita: ao tentar suicídio, filho morre assassinado pela sua própria mãe.

Antes dos créditos com o nome da primitiva flor estampada na tela, o narrador – Criador lembra-nos: “… Estas estranhas histórias acontecem ao tempo todo”. O narrador-Criador parece ausentar-se da tela e sentar-se ao nossa lado na sala escura, durante 3 horas de uma experiência singular.

O que encanta em “Magnólia” não é apenas a sublime técnica fílmica de Anderson, nem os takes, todos pintados como quadros ultra-realistas, muito menos o clipe inserido, com o elenco inteiro cantando “Wise Up”, tampouco a soberba atuação de Tom Cruise interpretanto um homem revoltado com o sexo oposto, para crucificar a ausência da mãe (ou para justificar a crucificação do pai), mas o que realmente faz toda a diferença são as subliminariedades desta obra.

Repare nos números oito e dois, a todo o momento. Repare no complemento a este número, revelado no programa “What Do Kids Know?”, no qual uma pessoa na platéia levanta um cartaz escrito “Exodus 8.2”.

Exodus 8.1 e 8.2 – Trecho retirado da Bíblia:

8.1 – “Depois disse o Senhor a Moisés: Vai a Faraó e dize-lhe: Assim diz o Senhor: Deixa ir o meu povo, para que me sirva.”

8.2 – “E se recusares deixá-lo ir, eis que ferirei com rãs todos os teus termos.”

E a chuva de sapos ocorre justamente após o filho (Tom Cruise), depois de horas de desabafo culpando ao seu pai (Jason Robards), enfermo na cama, decide por implorar que ele não morra.

Penso que nesta hora o Criador – narrador, evoca, sentado ao nosso lado, toda sua força. E se antes ele questionava, concordava e duvidava, junto ao povo, agora ele entendeu, que a única coincidência da vida é a morte. O nosso primitivo fim chama-se acaso.

Logo, com a chuva de sapos, fica claro a intenção do narrador de alertar para não sermos tolos, preocupando-nos com nossas relações apenas por temer perder nosso povo (repare em todos os personagens e suas ansiedades ante a situações terminais), acreditando que existe, junto da morte, o eterno legado chamado culpa.

Tudo em “Magnólia” é subliminar, mas a maravilha é que a tudo podemos enxergar. Todos os anjos, os ditos demônios, os pais, as mães, os primatas, as mensagens, como a frase que encontramos no quadro na casa de Claudia e que logo é dita pelo menino gênio na biblioteca: “Isto realmente aconteceu”.

Aconteceu. Como uma experiência que precisamos mesmo falar em alto e bom som, para acreditarmos. Questão de fé. E o narrador-Criador então possue em sua voz um tranqüilo tom, e a trilha instrumental que acompanha suas palavras parece acompanhar um novo profundo respirar. E no fim, nunca “The End” entende-se tudo, mesmo que não tenhamos êxito em expressarmo-nos em uma conversa informal na saída do cinema.

Tento aqui o meu resultado feliz, apostando no personagem Jim, o policial, como o mais ingênuo Salvador de todas as relações primitivas. Acredito que antes da lei e normas sociais, ele seja a personificação da proteção que sempre pretendemos, porém preterimos, por acreditarmos em coincidências. Gosto de imaginar que Jim Kurring, em “Magnólia”, é o guardião de uma primitiva flor, chamada nós.

Somos rotulados de outros nomes, como putas, drogadas, homossexuais, abusadores, e recebemos por isso uma peste sobre nossas cabeças, mas sabemos que, ao fim do dia, o difícil mesmo de caminhar pela calçada é saber o que podemos perdoar para, enfim, sobreviver e este mundo que insiste em ser habitado por homens que (acham) sabem que sabem (Homo-Sapiens).

Maurício Saldanha
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