Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 10 de janeiro de 2007

Caminho Para Guantanamo

Quem achou que o 11 de setembro foi um choque, espere só até assistir a "Caminho Para Guantanamo". Misturando documentário com traços ficcionais, o longa é simplesmente envolvente e nauseante, mostrando como os seres humanos são vistos em tempos de guerra. Prepare-se para ficar inconformado.

O filme independente que custou cerca de 1,5 milhão de libras nem parece tão independente assim. Situando o público em um verdadeiro campo de concentração, ambienta-se no pré e pós-ataque terrorista de 11 de setembro. Asif Iqbal (Afran Usman) é um jovem britânico de origem paquistanesa de 19 anos cuja mãe retorna do Paquistão anunciando que encontrou uma noiva para ele. Dias depois, Asif segue para o Paquistão, para encontrá-la e também conhecer a terra de seus pais e é acompanhado pelos amigos Ruhel (Farhad Harun), Shafiq (Riz Ahmed) e Monir (Waqar Siddiqui). Em Karachi, após 2 dias de viagens turísticas, eles vão rezar em uma mesquita. Lá ouvem de um líder local que o Afeganistão precisa de voluntários, o que faz com que sigam para Kandahar. Porém a cidade logo é bombardeada pelos americanos, como represália pelos atentados terroristas de 11 de setembro. Eles tentam retornar ao Paquistão, mas Monir desaparece e os demais são capturados pelas forças aliadas. É o início de uma série de torturas que os amigos sofrem, já que ninguém acredita que são turistas europeus. Em janeiro de 2002 eles são enviados à prisão americana de Guantanamo, em Cuba, onde durante 2 anos e meio tentam convencer os guardas sobre suas verdadeiras identidades.

Retratar a violência mundial e os tempos contemporâneos de guerra não é novidade na indústria cinematográfica. O que se percebe é que, quando isso ocorre, muitas vezes há um certo sensacionalismo ou então um pouco de cautela para não fazer besteira no sentido de não incomodar os líderes revolucionários. Além de retratos da realidade, os filmes do gênero tentam fazer uma crítica aos sistemas sociais impostos pelos países poderosos que vão entrando em conflito na busca de saber quem é o mais forte. Por outro lado, nem todas as produções têm a coragem de atacar o sistema de governo americano, acabando por demonstrarem-se impotentes e, de certa forma, superficiais. Entrando na linha do cineasta Michael Moore (dos excelentes "Fahrenheit 11 de Setembro" e "Tiros em Columbine"), "Caminho Para Guantanamo" não tem medo de expor os fatos como foram, independente se um tal de Bush goste ou não. O mais interessante de toda a película é que ela consegue revoltar, angustiar e, acima de tudo, documentar a irresponsabilidade do poderio americano e sua tendência a achar que pode atacar os direitos humanos quando bem entender. A história já tem um acerto logo de cara: mistura a parte de documentário que mostra os depoimentos dos paquistaneses injustiçados pelos americanos, ao mesmo tempo em que leva para o lado ficcional, não se encaixando somente em uma reconstituição, mas conseguindo recriar de forma realista tudo que vai sendo revelado.

A gradação da história vai atingindo tantos pontos fortes que você começa a se perguntar se tudo que já foi visto não bastava ter acontecido. Muitos podem considerar que o roteiro foi um pouco exagerado ao não medir esforços em mostrar o tratamento que os "prisioneiros por engano" estavam recebendo em cada alojamento que ficavam, tratados de forma subumana, como verdadeiros porcos. É bastante interessante analisar também a integridade dos personagens durante toda a projeção. Cada um cresce dentro da trama de uma forma arrebatadora e acaba ganhando uma credibilidade imensa, e acerta em não penalizar quem assiste, até porque as doses dramáticas não são sensacionalistas, e acabam por revoltar o público. É inaceitável saber que no mundo atual ainda agem como meros primatas desmiolados e impiedosos. Talvez os primatas fossem até mais inteligentes do que os "guerrilheiros". Tendo optado por atingir o lado inquietante do espectador, "Caminho Para Guantanamo" não repete o que aconteceu no recente documentário "O Homem Urso", que peca somente pelo lado melodramático intensificado e desnecessário, que poderia ter sido muito bem cortado do enredo que teria funcionado bem melhor. "Caminho Para Guantanamo" age como um simples semeador da realidade e consegue construir uma trama decente, pretensiosa e que cutuca nossas mentes para nos questionar se realmente temos noção do mundo que estamos vivendo. Os personagens da trama poderiam muito bem ser eu, você, meu pai, seu professor, qualquer pessoa. Asif, Ruhel, Shafiq e Monir estavam apenas na hora e no lugar errado e não tiveram o mínimo de sorte. Foram tratados como terroristas e forçados a levar uma culpa que não tinham. Particularmente, o longa atinge seu auge e mostra para o que veio quando mostra uma declaração do Sr. Bush afirmando que os presos de Guantanamo estavam sendo tratados com todos os direitos humanitários, apesar de serem "terroristas e assassinos", já que o que vemos na película é totalmente o contrário. Tirando os maus tratos que sofriam, ainda viviam ultrajes às condições humanas, além de, é claro, serem questionados: "Você é da Al-Qaeda?". Ou seria pior: "Seu amigo informou que você é da Al-Qaeda!". Absurdos tão absurdos que dá vontade é de rir.

O diretor Michael Winterbottom mereceu toda a ovação que recebeu. Realmente conseguiu conduzir a história da melhor forma possível, sem esquecer de ambientar, estimular, argumentar e justificar para que veio "Caminho Para Guantanamo". Dispondo de excelentes direções de arte e fotografia, Winterbottom planificou com muita síntese e obstinação cada cena, deixando transparecer o real valor de cada uma. Algumas vezes é possível notar que a câmera também se revolta e já não agüenta registrar aquilo e está fazendo isso somente por obrigação. Transparecer isso dá um upgrade genial na leitura do público, que fica mais abrilhantado com a competência do longa. Além disso, os atores, basicamente desconhecidos, mostram que não precisam de fama para trabalhar com competência. É difícil um ator não-pop assumir um projeto e conseguir credibilidade logo de cara e felizmente isso tem acontecido bastante, como vimos, por exemplo, no mexicano "O Labirinto do Fauno", onde a pequena Ivana Baquero dá um show na pele da protagonista Ofelia. E isso tem se repetido constantemente. Além de cortar custos com a preocupação de contratar um elenco famoso, ainda dá a possibilidade de revelar novas estrelas para a indústria cinematográfica, descentralizando os olhos financeiros das produtoras somente naqueles artistas já conceituados.

Chocante, desumano e pragmático, "Caminho Para Guantanamo" é uma obra que todos precisam conhecer para se situar nas atuais condições mundiais. Injustiça, guerra e mazelas sociais são retratos melancólicos e em preto e branco e vemos ao longo da projeção, que acaba pecando somente na duração da película, parecendo ser mais extensa do que 95 minutos. De qualquer forma, é inegável como conseguimos nos transportar àquele universo dos protagonistas e sentir o mau cheiro no ar. Meio documentário, meio dramatização, soube medir seus extremos e conseguir um resultado consistente e digno de elogios, mas que revolta e incomoda sua cabeça por alguns dias.

Diego Benevides
@DiegoBenevides

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