Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 10 de setembro de 2006

Maior Amor do Mundo, O

Quem vai ao cinema pensando que "O Maior Amor do Mundo" contará apenas uma historinha romântica e amadora, se surpreende. O roteiro de Cacá Diegues tem uma dimensão que expande para o lado do auto-conhecimento de seus personagens, trabalhando nossas escolhas e o que elas podem interferir nas nossas vidas.

Ambientado no Rio de Janeiro, o longa conta a história de Antônio (José Wilker), um solitário astrofísico que mora nos Estados Unidos, mas que vem ao Brasil para ser condecorado pelo Presidente da República por seus méritos conseguidos, ao mesmo tempo que descobre ter um tumor fatal no cérebro que o manterá vivo por menos de uma semana. Já na cidade do Rio, Antônio visita o asilo onde vive o seu pai adotivo (Sérgio Britto), um maestro idoso, viúvo de uma cantora lírica fracassada (Deborah Evelyn). Ao descobrir que o seu filho está prestes a morrer, o maestro confessa saber quem é a mãe biológica de Antonio, informando o sujeito sobre algumas possíveis indicações a respeito de sua origem. Então, seguindo essas pistas, Antonio chega à Baixada Fluminense, local pobre da periferia do Rio de Janeiro onde sua mãe de sangue teria vivido. O astrofísico conhecerá Mosca (Sérgio Malheiros), um garoto ligado ao tráfico de drogas que o indicará onde a casa de sua avó, Mãe Santinha (Léa Garcia), se encontra. É lá que ele conhece Luciana (Taís Araújo), mulata por quem sentirá atração logo em seguida. Enquanto percorre o Rio de Janeiro, Antônio vai recordando a sua infância, marcada pela frieza de seu pai adotivo (interpretado por Marco Ricca no passado), e adolescência (o Antônio adolescente é vivido por Max Fercondini), marcada pelo rapaz ter preferido se dedicar aos estudos científicos do que lutar contra a ditadura militar.

Seguindo um ritmo basicamente lento e nostálgico, "O Maior Amor do Mundo" é mais do que uma história de amor. Na verdade, o objetivo do roteiro de Cacá Diegues é mostrar as ironias do destino e como nossas escolhas são responsáveis por nos proporcionar ou não conhecimento sobre a vida. Sem seguir a linearidade, o enredo se passa durante várias décadas diferentes e essa mistura de presente e passado não fica confusa, sendo bastante clara e pontuada por características marcantes como a trilha sonora, que mais tarde comentarei. Os flashbacks que entram em sintonia com os momentos atuais fluem naturalmente e mostram uma visão amadurecida de Diegues ao trabalhar com o tempo da trama, caprichando inclusive no tratamento diferenciado que a película sofreu. Quando se referia ao passado do protagonista, Diegues procurou seguir uma linha mais escura e envelhecida que ajuda a caracterizar a época em que aqueles fatos ocorreram junto com o figurino e penteados específicos, diferente de quando a trama assume o caráter atual, onde podemos perceber o uso de cores mais limpas e fortes, que ajudam a compor o cenário em que se passa a história.

Além de brincar com o tempo e ter êxito ao mexer com o que seria ousado para qualquer outro diretor inexperiente, Diegues faz uma verdadeira análise dos seus personagens, incluindo-os dentro de uma conjuntura social realista, mas que não é maquiada pelo escracho, provando que não se precisa mostrar somente a violência suburbana do nosso país para ter um filme de qualidade. Quando ambienta-se na favela fluminense, Diegues consegue construir personagens que não são meras peças de uma sociedade desigual e que podem ser vistos como aqueles que também têm seus anseios e desejos. É a partir desse convívio com a realidade que o protagonista Antônio tem a oportunidade de sair, literalmente, do mundo da Lua e pôr os pés no chão para a realidade da vida, coisa que se intensifica quando ele se vê apaixonado por uma jovem e começa a despertar em si os sentimentos que não foram despertados nos seus cinqüenta e cinco anos de vida. E é meio a tanta maturidade que "O Maior Amor do Mundo" consegue se manter em um nível elevado. O diretor consegue conduzir a película com uma sensibilidade imensa, valorizando as sensações que cada cena pode causar no espectador e investindo em planos fechados para captar bem as expressões de cada personagem e abrindo os planos para fotografar imagens impecáveis. Sem falar na câmera solta que causou um toque de intimismo a quem assiste, deixando-se levar pelo protagonista e sua incessante descoberta sobre a vida. Mesmo assim, nem tudo pode ser tão perfeito. Diegues infelizmente consegue errar no timing de cenas bobas que poderiam ser melhores exploradas e que resultariam em bons momentos para a trama, mas que são cortadas do nada, meio que despreocupadamente, prejudicando no andamento que vinha tendo.

Dispondo de um elenco basicamente vindo de novelas nacionais, o diretor conseguiu explorar bem seus personagens e criar neles um mundo pessoal que não os deixam soltos dentro da trama. José Wilker está impecável como Antônio. Não que eu seja um grande admirador, mas no começo ele parece meio desconfortável no seu papel, e vai se adequando à medida que consegue captar melhor a densidade dramática do enredo, mostrando-se insubstituível no filme. Realmente não consigo ver outro ator que faria melhor e com tanta maturidade. Outro destaque é Taís Araújo. Mais uma vez trabalhando com Diegues, a moça tem uma presença muito forte em cena e destaca-se pela sua versatilidade e naturalidade, fazendo de Luciana uma personagem eclética e sedutora. Nomes como Hugo Carvana, Léa Garcia, Sérgio Britto e Sérgio Malheiros elevam a qualidade do elenco junto a Marco Ricca e Deborah Evelyn que, por mais que apareçam poucas vezes, mostram do que são capazes junto a um diretor competente e que sabe o que quer.

E a trilha sonora? Além de pontuar os variados momentos que a história aborda na vida de Antônio e sua trajetória à morte e ao seu auto-conhecimento, aparece em harmonia com o roteiro, variando de Chico, Gil e Caetano até a cantora Pitty e outros nomes da música contemporânea. Principalmente quando toca aqueles três primeiros, a trilha junta-se ao lirismo do roteiro e constrói uma dimensão quase inquebrável sobre a vida e o destino. Além disso, os recursos sonoros usados para pontuar momentos como o homem pisando na Lua e a retratação da copa de 1950 onde o Brasil perde para o Uruguai e desaponta toda uma nação são impecáveis, principalmente este último, que, nomeado no filme como um dia de tragédia, é usado como comparação a vida que o protagonista vem tendo e o seu destino, que é a morte. Morte esta que mais do que nunca é mostrada como a certeza que todos nós temos, mas que não é trabalhada em cima de estereótipos, sendo mais um personagem na trama.

Juntando-se à lista de boas produções brasileiras, "O Maior Amor do Mundo" mostra um cinema nacional sensível e poético, não só feito para arrecadar vil metal nas bilheterias locais, mas que tem toda a chance de expandir as fronteiras, o que, por sinal, já está acontecendo. Prova disso foi a premiação conquistada no Festival de Montreal, onde competiu com outros 21 filmes e se destacou no meio de tantas produções de alto nível. Como já é de se esperar, emocionar e tocar o espectador nem sempre são funções que obtêm cem por cento de êxito, deixando alguns espectadores insatisfeitos, mas tenho certeza que aqueles que gostam de um interessante estudo sobre a vida e seus deslizes, desejos e fracassos, não conseguirão conter a tristeza que nos assola ou as lágrimas que invadem nossos olhos. Acima de tudo, uma obra na qual os símbolos são mais reais do que nunca, onde viver é um jogo, e onde ninguém realmente está preparado para o amor.

Diego Benevides
@DiegoBenevides

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