Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 14 de agosto de 2006

Zuzu Angel

O carioca Sérgio Rezende, co-roteirista (com Marcos Bernstein) e diretor deste “Zuzu Angel” (2006), logrou chamar nossa atenção em “O Sonho Não Acabou” (1981), seu primeiro longa, pela simplicidade com a qual captou a perplexidade e o temor do futuro por parte de jovens brasilienses, e pela forma como encerrou o filme: enquanto os Dragões da Independência desfilam em câmara lenta, ouve-se o Hino Nacional em ritmo compassado - magnífica fusão de imagens significantes com a música de nossas raízes históricas.

Vindo de curtas em 16mm, como “Leila para Sempre Diniz” (1975) e do documentário “Até a Última Gota” (1980) sobre o comércio do sangue em nosso Hemisfério Sul, Rezende tem a seu crédito filmes como “O Homem da Capa Preta” (1985), a superprodução “A Guerra de Canudos” (1997), “Mauá” (1999) e “Os Piadistas” (2002).

Sua inegável competência técnica levou-o a Moçambique onde, a convite de produtor inglês, dirigiu o drama político: “Children Are Waiting” (2002).

Rezende eleva agora o nível qualitativo do cinema nacional e faz denúncia contundente contra o arbítrio e a violência dos chamados “anos de chumbo”. “Flashes” de documentários da época abrem o filme e mostram a repressão aos movimentos de rua e à guerrilha urbana. Enfim, a luta armada contra o regime militar de então, da qual muitos participaram equivocadamente, não só porque os radicalismos não beneficiam ninguém como pelo desequilíbrio das forças em conflito.

O foco é a estilista Zuzu Angel, de prestígio internacional no campo da moda, com exposições bem sucedidas dentro e fora do País. Quando não tem notícias do filho Stuart Angel, militante do MR-8, há vários meses, recebe um telefonema sobre a “queda” de Paulo (seu codinome), isto é, sua prisão. Zuzu procura-o obstinadamente na PE e nos quartéis, numa espécie de luta solitária contra o regime.

Não encontra o filho e depois vem a saber da morte dele sob bárbara tortura, a “covardia suprema”. A vingança de Zuzu era mostrar desfiles com trajes sugestivos da repressão política no Brasil. Como lembrou Flávia Guerra, ela usou nos desfiles simulacros de balas de canhão, pássaros engaiolados, anjos amordaçados e desenhos bélicos…

Zuzu procura levar o caso à Justiça, mas inexiste “habeas corpus” para crimes políticos. Recorre ao ex-marido, um americano acomodado, residente no Brasil, redige cartas para dezenas de pessoas importantes, entra em contato com a “Amnesty Internacional” e tenta até entregar um dossiê a Henry Kissinger, Secretário de Estado e apoiador da ditadura corrupta e perversa de Pinochet. Tudo em vão.

O alívio do desespero chega pela via esdrúxula de um dos militares envolvidos (Aramis Trindade, em papel curto, mas de primeira linha) na prisão e morte de Stuart. Sabe de tudo e está disposto a entregar um dossiê sobre a verdade. A pressão aumenta, fones grampeados, passos vigiados, situação pessoal de Zuzu vulnerável até o final sabido e consabido. O destino do seu filho é mostrado em cena de forte impacto.

A “mise-en-scène” de Rezende é das mais eficazes de quantas vimos ultimamente no cinema nacional. Optou ele pela ordem interrompida ou ruptura da linearidade, sempre mais difícil de operacionalizar em relação à ordem direta e ao “flashback”. Pois há recuos e avanços na unidade espácio-temporal, inserção rápida de detalhes relevantes para entendimento das relações de causa e efeito. Qualquer uma dessas três ordens serve ao bom cinema, contanto se saiba como trabalhar com elas.

Mesmo com a quebra da continuidade, Rezende não esquece os “raccords” quando precisa mostrar o personagem abrindo uma porta para entrar e ele mesmo fechando-a do lado de dentro, ou quando uma mão pega o gancho do fone para ouvir e depois recoloca-o no lugar.

Há cenas nas quais a direção se supera, quando Zuzu vai ver o pai de Lamarca (Nélson Dantas em sua última aparição na tela), por quem o filho dela deu a vida com o silêncio. O velho sapateiro não fala, olha, ouve, e uma pausa espectral cai entre os dois, enquanto o pobre homem mantém preso nos dentes um prego do sapato.

A tensão envolve o espectador desde quando Zuzu revela seu medo de morrer, e é mantida não só enquanto ela está em casa, mas também quando fica a sós com o agente do sistema e vai ao banheiro para lavar o rosto; quando sai, vê a janela presa por uma corrente e a porta trancada.

Rezende não esquece as angulações ricas, como quando usa o “contre-plongée” para captar os balcões da escadaria em espiral do prédio e o barulho típico da arma caindo lá do alto, tampouco o ritmo das ações porque sabe dosá-las na medida certa. Valeu inserir toque irônico quando o agente da repressão não consegue desligar o “tape” do carro onde ouvimos o “Apesar de Você” de Chico Buarque.

A direção de atores extrai do talento cênico de Patrícia Pillar uma de suas melhores interpretações no cinema. Bons também estão Alexandre Borges, Flácio Bauraqui (Capitão e agente infiltrado), Ivã Cândido no padre retrógrado, o já referido Aramis Trindade, Daniel de Oliveira como Stuart, e o veterano Othon Bastos. Os demais coadjuvantes não destoam do conjunto. Pedro Farkas atua na direção fotográfica e adiciona outra melhoria sensível em nossos padrões técnicos.

O som direto a cargo do cearense Márcio Câmara é digno de encômios, pois boa parte dos nossos filmes ainda claudica no tocante. Do seu trabalho não perdemos uma palavra. Quanto à trilha sonora, pareceu-nos um tanto excessiva, mas esse detalhe não arranha a qualidade do conjunto. Um filme para adultos não-impressionáveis. A ver, rever e refletir.

L.G. de Miranda Leão
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