Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 27 de março de 2005

Adversário, O

Em seu último dia de exibição de 2004, o Cinema de Arte nos trouxe “O Adversário”, filme da diretora e atriz Nicole Garcia, baseado no crime mais inacreditável que o povo francês já presenciou.

Jean-Marc Faure é um exemplo de homem almejado por qualquer esposa, filho, pais ou amigo. Um atencioso médico membro de uma importante instituição francesa. Nunca deixou nada faltar para a família, comparece às reuniões de escola, oferece jantares aos amigos e visita os pais constantemente. Apesar dessa fachada, Jean-Marc é um homem extremamente sozinho, pois há quase 20 anos vive uma farsa. No segundo ano da faculdade de Medicina, não conseguiu passar nas verificações finais. Continuou freqüentando as aulas, sem fazer as provas. Com receio de contar aos amigos o ocorrido, foi adiando o fato durante todo este tempo. Formou uma família e permaneceu com esse segredo, guardado consigo, apenas. Cultivou uma vida infeliz, baseada na mentira.

Todos os dias saía de casa e ficava rondando a cidade. De quando em vez ia ao hospital em que dizia que trabalhava, abria uma pasta, sentado no corredor. Um dia, sua esposa percebe que ele a está enganando em relação a um assunto sem importância. Isso faz com que ela passe a notar que o marido não é quem ela imaginava, pois ele havia mentido. Quando ela liga para o hospital à procura do marido, o nome dele não consta na lista dos profissionais que lá trabalham. Pior do que uma mentira seria outra maior. Ela começa a questioná-lo, achando que ele perdeu o emprego e não quis contar. Isso tudo é o estopim para que Jean-Marc passe a enlouquecer, pois a base de sua farsa, a família, está começando a destruir o seu mundo surreal, tão meticulosamente criado. Fora de si, ele assassina todos aqueles que mantinham sua fantasia, as mesmas pessoas que construíram-na juntamente com ele, e que começavam a destruí-la quando sua máscara estava caindo.

Este é o segundo filme sobre o caso. O primeiro, “A Agenda”, de Laurent Cantet, foi exibido no ano passado pelo Cinema de Arte. “O Adversário”, a segunda versão, é dirigido por Nicole Garcia. Seu principal trabalho como diretora foi o filme “Place Vendôme”, que conta com a musa francesa Catherine Deneuve no papel principal. Como atriz, a vemos no ótimo e recente “Betty Fisher e outras histórias”, em que faz a mãe da protagonista; e em outros nomes como “Meu tio da América” e “O filho preferido”.

A diretora diz ter-se interessado pela incrível duração da mentira que Jean-Marc construiu e, também, pela íngreme natureza da sua impostura. Ao mesmo tempo, sentiu-se horrorizada com o delírio daquele homem, que o levou a assassinar os seus familiares. O filme é resultado de um desejo dela de se defrontar com essa personalidade. A escolha de Daniel Auteuil soa como, no mínimo, errônea, quando falamos de uma história verídica, pois o ator é um ícone do Cinema Francês, senão do Europeu. Ter escolhido um ator desconhecido teria dado mais veracidade à obra, mas a diretora justifica a escolha pelas qualidades insólitas de Daniel: ele está disposto a correr qualquer risco, porque ele é um dos poucos atores franceses a proporcionar uma profundeza trágica ao cinema. Daniel é único. Ele possui uma qualidade muito especial de interioridade, composta de familiaridade e opacidade. A interpretação dele é cinema puro. Creio que tudo o que ele fez no filme, o menor movimento ou silêncio, corresponde a uma instrução que eu lhe dei. Contudo, quando vejo as imagens, eu me pergunto: “Como ele fez isso?” Durante todo o filme, não sabemos exatamente o que ele pensa ou o que está pensando. É como se estivéssemos olhando sua alma através de um véu que fica cada vez mais opaco.

O filme foi indicado à Palma de Ouro em Cannes e ao Cesar (principal prêmio do cinema francês) nas categorias Melhor Ator (Daniel Auteuil), Ator Coadjuvante (François Cluzet) e Atriz Coadjuvante (Emmanuelle Devos).

No debate promovido pelo Cinema de Arte após a sessão, foi discutido o tema do qual o filme aborda. Os psicanalistas Francisco Freitas, da Sociedade do pensamento Yungiano e Paulo Marchon, do Núcleo Psicanalítico de Fortaleza afirmaram que o filme causa um impacto grande pela dimensão da tragédia humana. A psicologia está na motivação do crime. É a ficção em torno de um fato. Um trauma pode ser tão grande, que um indivíduo se torna incapaz de manter vínculos, pois só há vínculo quando há uma troca de comunicação. “Mais duro que o descaramento, é não ser desmascarado”, é a frase que surge no início do filme. O que é um indivíduo viver e não poder dividir com as pessoas que mais ama, um segredo que o atormenta há 20 anos? Isso só pode possibilitar que o indivíduo seja um homem infeliz, sempre carregado de apatia. Há uma concordância da mulher nesta simbiose, pois em inúmeros anos de casamento, ela jamais visitara o local de trabalho do marido. O contexto familiar faz parte da patologia. Jean-Marc mata a família pela possibilidade da quebra de seu mundo fantástico. A diretora deixou uma lacuna sobre a vida do personagem justamente para ficarmos com essas interrogações de que trauma haveria ele passado para chegar a esse ponto.

O Cinema de Arte retornou na primeira sexta-feira de janeiro com o filme “Voltando para Casa”, da polonesa Agnieska Holland, em que conta o drama de uma mulher dividida entre a fé e a razão, enquanto procura a cura para a doença do filho.

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

Compartilhe

Saiba mais sobre