Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 10 de abril de 2005

Casa dos Bebês, A

"A Casa dos Bebês", de John Sayles, que estreou sexta-feira, no Cinema de Arte, põe em discussão a adoção como mercado no terceiro-mundo.

Para quem é conhecedor da obra de John Sayles, sabe-se bem que há em seus filmes um grande questionamento social, retratado através da construção dos personagens e na situação irônica com que eles vão se adaptando. Para este roteirista nato, que assume-se fã de literatura desde seus nove anos de idade, o filme Casa dos Bebês, em cartaz no Cinema de Arte, pode desapontar. Há de fato uma intenção de se ir além do que é posto na narrativa, que seria, por exemplo, criticar o sistema de adoção de crianças de países de terceiro mundo. Mas a motivação literária vai se desfocando… quase se dissipando, na medida em que as inócuas personagens tomam o poder de fala.

Como bem disse, a intenção do diretor americano é levantar uma reflexão sobre a indústria da adoção, tomando o México como cobaia do imperialismo americano. Pois bem… isso se dá pela força do estranhamento? O olhar do estrangeiro, ou melhor, das pobres americanas, esvaziadas de sensações, desprovidas de afeto… secas, inférteis. Sim… sim, vieram ao México em busca de uma criança para dar-lhes sentido à vida. Mas… onde estão afinal os McDonalds da esquina? E cadê o laquê para os cabelos daquelas refinadas mulheres? Nem o banheiro funciona direito. Meu Deus, e que língua é aquela? Que terra é esta, meu Deus! Onde é que tá a Coca-Cola?! Enfim, a tentativa desesperada de se mergulhar na vida de cada uma das seis mulheres não vai além da superfície embora, raramente, ainda consiga trazer à tona algo digno de análise mais aprofundada.

Ah… mas devo falar sobre a situação atual do comércio de crianças…. ah, perdão… é da ausência de conforto de primeira classe nos paises de terceiro mundo… ah, me engano. O filme trata da questão da indústria da adoção, made México to América.

Que horror de resenha é essa? Mais caótico que isso, só o filme! Pois ali mesmo, nada funciona… nem as cenas do garotinho, limpador de carros e trombadinha, funciona direito. Em uma tentativa de roubo, o garoto vacila, e leva como prêmio, uma cabra… quem dera se fosse de verdade. Pelo menos saciar-lhe-ia a fome. Mas é um livro, companheiro! Irônico, porque nos é dito que a cultura nos salva, que o livro é o instrumento para a cura… mas onde estão las cabritas, hombre?!!! Estampadas em papel em meio à palavras mortas, feito um pasto alienígena, que só será colhido por algumas daquelas crianças, que um dia hão de sair de seus orfanatos via o American Express da gringa americana. Se não… é só torcer que vençam a fome, e que os livros lhes nutram a alma.

Êpa. Pera lá… não estou aqui desmerecendo o trabalho do diretor, não… Pelo menos ele teve intenção de fazer algo bem feito. “Meu grande interesse é falar sobre as pessoas”, revela Sayles. Mas ele ficou na intenção. No “quase”, como bem lembrou-me Sá-Carneiro. Houve realmente momentos em que ele “quase” fez por merecer, como nas cenas mais simples. Uma em que Maggie Gyllenhaal fala ao celular com o marido distante, e outra como a seqüência em que a mulher americana e a jovem mexicana trocam confidências cada uma em sua língua materna, e, mesmo sem entender pantavilhas nenhuma da língua do estrangeiro, elas se entendem. A dor é, de fato, um sentimento universal. Tanto como o ridículo retratado nas baixarias da TV local.

Mas, calma lá. Direcionemos nossa lupa agora em cima dessas mulheres para que sejamos mais interpretativos de seus esvaziamentos existenciais. Bom… as hóspedes da Casa dos Bebês, tão rosa quanto à casa da Xuxa, incluem Nan (Marcia Gay Harden), uma mulher insuportável, preconceituosa, mentirosa, e que possivelmente seja um reflexo de uma infância sofrida pelos maus tratos da própria mãe. Pior do que esbarrar nessa mulher é imaginar a educação que a mesma daria à seu enteado.

Há também a atletista Skipper (Daryl Hannah), fanática por alimentos saudáveis, fitness, e qualquer outra forma que lhe garanta a boa forma, o que ironicamente se contrapõe com sua esterilidade. Trata isso tudo como uma verdadeira religião: a limpeza do corpo garante-lhe a limpeza da alma.

A cínica Leslie (Lili Taylor), que abriu mão dos homens em sua vida, responde à altura às provocações de Nan, que vira-e-mexe põe-se a ridiculariza-la por ser lésbica, dizendo que a adoção é um grande negócio, o que legitima sua conduta de regatear o preço de uma criança com a mãe natural. Jennifer (Maggie Gyllenhaal) é uma mulher rica e estagnada, que parece estar passando por uma fase difícil no casamento. Eileen (Susan Lynch), de origem irlandesa, conta cada centavo e fica sem comer para não ultrapassar seu orçamento restrito.

Gayle (Mary Steenburgen) é católica que se recupera do vício do alcoól, e se esforça para manter o equilíbrio emocional, mesmo que através das inúmeras fofocas com que compartilha com as “amigas”. A adoção do bebê retomaria seu equilíbrio emocional.

O hotel é administrado pela breguíssima Sra. Muñoz (Rita Moreno), cujo filho está em liberdade condicional, depois de cumprir pena por suas atividades revolucionárias. “Eles (americanos) fabricam as armas, mas somos nós (os latinos) que apertamos as bombas”, diz ele aos companheiros de bar.

Tinha realmente tudo pra dar certo. Um bom elenco, um excelente argumento, um interessante cenário… Mas a sensação que o filme nos dá é que ele poderia ter soado melhor nas páginas de um livro. Mesmo tratando de temas atuais, tais como o desemprego que assola tanto o México como os demais países de terceiro mundo, a questão do aborto na adolescência, e o retrato do menino de rua que limpa carros para sobreviver, o filme soa demasiado forçado e pretensioso e muito muito esquisito.

É um filme sobre o sistema de adoção em países pobres como o México, cheio de meninos famintos, como no Brasil. Uma brecha do quarto de um orfanato, onde crianças mestiças, de sangue mestiço, são embaladas por canções de ninar de sua terra, desiludida, miserável e vendida pelo American Express do Império vizinho. No entanto, o retrato de uma pátria-mãe que vende seus filhos não foi suficiente para se fazer um bom filme. “Eu não estou interessado em cinema de arte”, diz Sayles. Então tá…

Sem mais comentários.

QUEM É JOHN SAYLES?

Um dos mais conhecidos cineastas independentes americanos, o trabalho de John Sayles se baseia em experiências pessoas e sua visão social sobre a sociedade americana. “Meu grande interesse é falar sobre as pessoas”, admite. “Eu não estou interessado em cinema de arte”. Apesar disso, ele desenvolveu um singular estilo cinematográfico, utilizando tão bem quanto suas habilidades performáticas.

Após aparecer em peças na escola, Sayles embarcou na carreira de ficcionista, escrevendo histórias para revistas. Seus dois romances “Pride of the Bimbos” (1975) e “Union Dues” (1977), e sua antologia de contos, “The Anarchist's Convention” (1979), recebeu palmas da crítica por sua fiel caracterização e autenticidade do uso dos dialetos, mesmo que ele não tenha alcançado um imediato sucesso financeiro.

John Sayles nasceu em Schenectady, Estado de Nova York, EUA, em 28 de setembro de 1950. Voraz devorador de livros a partir dos nove anos, começou a escrever seus artigos e romances aos 22, mas o primeiro, “Pride os the Bimbos” só foi publicado em 1975. o trabalho exercido nessa época, numa fábrica de Boston, parece ter lhe despertado a consciência social. Contratado como roteirista por Roger Corman, observa a produção rápida dos filmes e, mostrando aprendizado, faz seu trabalho de estréia como diretor, Return of the Secaucus Seven (80), em apenas 25 dias.

Seus filmes seguintes fracassaram – Baby, it’s you (82), Lianna (83), Brother from Another Space (84). Consegue se livrar das dívidas escrevendo roteiros (O Clã do Urso da Caverna (85), de Michael Chapman; e Breaking In (89), de Bill Forsyth) Faz, enfim, um sucesso com Vida na Cidade (91). Mas a esperada guinada só veio em 1996 com Estrela Solitária, o qual o coloca entre os grandes cineastas independentes dos EUA. O filme forçou como revisão de sua filmografia, todos seus trabalhos foram revalorizados e vistos como “puras mensagens de consciência social”, de questionamento aos valores tradicionais norte-americanos, ao mesmo tempo em que permeou um novo olhar sobre as culturas regionais e a importância dos imigrantes, especialmente latinos. Sempre contando com a colaboração de Maggie Renzi – a quem conheceu na faculdade nos anos 70 e até hoje forma uma união sólida “sem planos para casar”, como ele diz – Sayles realizou em seguida Homens Armados (97), Limbo (99) lançado em vídeo, Sunshine State (2002) e Silver City (2004), ambos ainda inéditos no Brasil. A Casa dos Bebês tornou-se sua obra mais polêmica ao tratar da questão da adoção de crianças latinas por mulheres norte-americanas.

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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