Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 19 de outubro de 2005

Código 46

Dirigido por Michael Winterbottom, Código 46 é um filme que contém ficção científica, romance e drama, caso seja necessário rotular.

Conta a vida num futuro cheios de restrições à liberdade, quando a ciência possui pleno domínio sob os genes. É um mundo regido por códigos de conduta, que se adaptaram aos perigos das inovações genéticas. Códigos como o de número 46, que dizem “o que é melhor para todos”.

O argumento está longe de ser original: investigador se envolve com uma suspeita, fato que impede a relação. No filme, entretanto, o caso é bem mais complicado, pois William Geld (Tim Robbins), encarregado de fiscalizar os vistos ilegais num mundo contaminado por diferentes vírus, apaixona-se por Maria Gonzalez (Samantha Morton) durante uma investigação em Xangai.

A história se passa num futuro próximo, o que não significa distância da nossa realidade. Sendo assim, alguns elementos de persuasão são introduzidos: a referência a diferentes idiomas sugere a diluição das fronteiras culturais entre os diversos povos; nas primeiras cenas, notamos personagens de fenótipos oriental, latino e ocidental; os planos gerais exploram a arquitetura urbana moderna, na tentativa de facilitar o mergulho do espectador ao mesmo tempo em que são apresentadas bugigangas futuristas, típicas do gênero ficção científica.

Durante o filme, duas marcas de refrigerante disputam o merchandising cinematográfico em rápidos espaços, fato que tenta tornar a propaganda “espontânea”, como se a marca estivesse lá por acaso, mas que findam por descolar o espectador da história.

O filme é interessante, chamando a atenção para questões como o avanço desenfreado da engenharia genética e a irresponsabilidade na manipulação dos genes, apontando os possíveis malefícios trazidos. Da mesma forma, permite ao espectador pensar um mundo não muito diferente do nosso, onde empresas, como a Sphinx (esfinge) vista no filme, controlam o direito de ir e vir de todos, devido à propensão de alguns a determinado vírus. Como falar em liberdade neste sistema (o do filme e o nosso sistema)? A analogia não é tão complexa: troquemos o ticket por uma cédula de 100 reais e estaremos nos dias de hoje. Embora haja criticidade na trama, tudo está subordinado ao romance, o que não compromete o filme, até o enriquece, mas pode decepcionar alguns admiradores da “ficção-científico-social”.

Alguns críticos colocam o filme entre O Brilho Eterno De Uma Mente Sem Lembranças e Encontros e Desencontros. Discordo em parte, porque, embora haja assuntos semelhantes a ambos, Código 46 consegue manter a independência e desenvolver um conjunto de idéias próprio.

Tim Robbins, como de costume, faz bem a tarefa de casa, apesar da artificialidade das "frases de efeito" em suas falas. Mas quem se destaca realmente é Samantha Morton. Maria Gonzalez, seu personagem, extremamente bem escrito e vivido, apaixona instantaneamente, pelo comportamento autêntico e o jeito singelo de falar e ouvir… Atenção em especial à atuação de ambos na segunda cena de amor, uma das mais belas e comoventes cenas de amor feitas pelo cinema narrativo na atualidade, pelas circunstâncias daquele momento na história do filme, apesar de Winterbottom explorar imagens desnecessárias. A atmosfera criada, que antes inspirava frieza e morbidez, após o início do romance adquire certo charme, “caramelizado” pela trilha sonora, que também se destaca.

Michael Winterbottom conquista o espectador pela sofisticação feita com simplicidade que envolve o filme. Desenvolve um ritmo narrativo agradável sem deixar o público sufocado de imagens e sons. Sua opção pela câmera lenta se encaixa bem aos sentimentos de Maria, dando à cena mais sensibilidade. A história se torna mais atraente para o espectador pelo fato de o narrador (onisciente) ser a própria Maria desde começo da trama, relatando seus passos e os de Geld (Tim Robbins).

Código 46 talvez represente mais uma prova de que unir entretenimento a um pouco de reflexão é cada vez menos um dilema insolúvel, ainda que se constate uma obediência deste cinema a esquemas supérfluos como o star-system (presença das estrelas) e a velha fórmula descrição-conflito-clímax-desenlace. É um bom filme e merece ser conferido pelo público pela doce viagem e pelas preocupações que levanta.

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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