Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 06 de março de 2006

Crash – No Limite

Sem sombra de dúvidas, um dos melhores filmes do ano. Sem nunca cair na homogeneidade, o diretor Paul Haggis intercala com muito estilo, histórias que nos fazem refletir não só sobre o preconceito que existe em nossa sociedade, mas a natureza humana.

Sabe aquele filme que chega desapercebido nos cinemas tendo um baixo orçamento (custou apenas 6,5 milhões de dólares), dirigido por um diretor inexperiente (pelo menos como diretor, já que como roteirista, Paul Haggis tem uma vasta história), chamando atenção apenas pelos rostos conhecidos que possui no elenco, mas ao sair do filme, você sai perplexo com a maravilhosa obra apresentada, além de um verdadeiro nó na garganta devido seu alto teor crítico da nossa sociedade? Pois esse é “Crash – No Limite”, um verdadeiro soco no estômago da raça humana no geral, que rodeada de preconceitos, simplesmente perdeu a própria identidade. Um filme denso, penetrante, e acima de tudo, muito bem dirigido.

O filme mostra o encontro de vários personagens totalmente diferentes nas ruas de Los Angeles: uma dona-de-casa e seu marido, promotor público da alta sociedade; um lojista persa; um casal de detetives da polícia – ele afro-americano, ela latina -, que também são amantes; um diretor de televisão afro-americano e sua esposa; um mexicano e sua filha; dois ladrões de carros da periferia; um policial novato e seu parceiro, um policial experiente e racista; e um casal coreano de meia-idade. Todos vivem em Los Angeles e cada um tem sua própria história. Nas próximas 36 horas, eles vão se encontrar.

Sem protagonistas ou edição linear, o filme conta com um trabalho de montagem primoroso de Hughes Winborne, de forma que as várias histórias e subtramas pertencentes à trama, vão se juntando aos poucos dentro do raciocínio do espectador, visto que elas, na grande maioria, nunca chegam a se cruzar por completo. Não há personagens de maior ou menor importância dentro da(s) trama(s), visto que todos possuem um significado de extremo valor para o desenvolvimento do roteiro.

Por sinal, o roteiro, escrito pelo próprio diretor Paul Haggis em parceria com Robert Moresco, conseguiu a difícil missão de encaixar diversos nomes conhecidos de uma forma igualitária na trama. Dentre os nomes mais conhecidos, Matt Dillon, Ryan Phillipe e Don Cheadle cumprem muito bem os seus papéis, cada um transmitindo com precisão a essência de seus personagens. Sandra Bullock e Brendan Fraser aparecem menos tempo e a história que envolve seus personagens é a menos interessante do filme, fato que, tira um pouco do brilho dos astros, ainda que suas interpretações não comprometam. Ressalto que, a história que envolve os personagens de Bullock e Fraser é a mais desinteressante, mas nem por isso, a menos importante, afinal, nela são retratados diversos pontos críticos induzidos pelo roteiro, como o preconceito para com a mulher, para com as amizades, e até nos relacionamentos entre casais. Dentre o volumoso elenco, nomes menos conhecidos como Chris “Ludacris” Bridges (de “+ Velozes + Furiosos”) e Larenz Tate (de “Corridas Clandestinas”) roubam a cena como a dupla de assaltantes que dá início a todo o carrossel de subtramas do roteiro. Outro que se destaca é Michael Pena (de “The Calcium Kid”) na pele do dedicado pai de família que trabalha como chaveiro. O ator, inclusive, é o protagonista da melhor e mais emocionante cena do longa. Falando nesta tal cena – que não irei revelar por motivos óbvios -, ela com certeza fará você ou pular da cadeira, ou sentir um aperto dentro de si mesmo. Imagine a sensação obtida no clímax do fabuloso “Old Boy” acrescida de uma forte dose de drama, que você chegará perto do impacto provocado por esta cena de “Crash”.

Em meio a inúmeros personagens divididos em histórias entrelaçadas, o roteiro sempre volta para um aspecto, este, o principal foco do filme: o preconceito. Todos os tipos de preconceitos são muito bem retratados no filme, seja para com os negros, jovens, orientais, persas, latinos, mulheres, ou o que for. O tema é tratado com tamanha complexidade, de forma que saímos do cinema com raiva de nós mesmo. Mas porque com raiva de nós mesmos? Simplesmente porque somos humanos, e o filme consegue mostrar com maestria o quanto esta raça é temerosa a si mesma, de forma que o preconceito seja o fator predominante de toda a sociedade, confirmando o status de caos do mundo em que vivemos. Sim, vivemos em um verdadeiro balaio de discórdia.

O tema “preconceito” por si só, já é um tanto batido no cinema, mas “Crash” vai muito além dos clichês, de forma que passamos a analisar a natureza humana, chegando assim a perguntas que por mais que pareça que sabemos, elas nunca terão respostas, como “Quem somos nós?”. Tudo varia da visão – seja crítica ou não – de cada um. O filme retrata o quanto é inadmissível que uma raça tão evoluída como a raça humana, seja vítima de seus próprios conceitos, de forma a nos fazer questionar até onde vai a razão do homem, a ponto de ser rotulado com um animal racional. Podemos até negar, mas o preconceito é uma vertente que está presente na essência do ser humano. Por mais que tentemos ser justos, honestos e briguemos por um regime igualitário, as diferenças sempre existirão, e sempre um negro, ou um jovem, uma mulher, ou seja o que for, será visto ou tratado com um certo desdém. As diferenças não são vistas unicamente com o próximo, mas consigo mesmo, mostrando o quão nossa sociedade é preconceituosa consigo mesma, perdendo qualquer valor ético ou moral. No final, chegamos a mais uma perguntas freqüentes no nosso dia-a-dia: “Afinal, em quem podemos confiar se tememos a nós mesmos?” “Enfim, aonde chegaremos?”.

Mas, “Crash” faz questão de mostrar o quão contraditório e complexo é o ser humano, de forma que seja impossível avaliar uma pessoa por ela ser racista, honesta, justa, ou qualquer outro adjetivo que defina um ser. Tais contradições são muito bem representadas em boa parte dos personagens, como no policial interpretado por Matt Dillon, que apesar de racista, age contra seus conceitos ao salvar uma mulher negra – quem ele havia feito passar por uma situação vexatória em outra cena – da morte, e se mostra um homem que dedica boa parte de seu tempo a cuidar de seu pai doente. Será que podemos avaliá-lo como uma pessoa má por ele demonstrar ser racista? Já o policial interpretado por Ryan Phillipe, se mostra um jovem de boas maneiras, e que à primeira vista abomina o preconceito. Mas, ele acaba por realizar um ato que quebra toda a impressão que se teve até então dele. Será que podemos avaliá-lo como uma boa pessoa, apenas por ele não demonstrar ser racista? Esses são apenas alguns exemplos mostrados no filme, que provam que o quão contraditório é o ser humano e que certo e o errado, o bem e o mal, não passam de dados relativos, e a natureza humana será uma eterna incógnita, afinal, o mundo é relativo.

Paul Haggis, que havia escrito o premiado roteiro de “Menina de Ouro” e como diretor, havia dirigido apenas o sem expressão “Hoje é Dia de Rock” há treze anos atrás, mostra ao mundo que tem status suficiente para integrar o primeiro time de diretores de Hollywood. “Crash – No Limite” é um filme excepcional que pode ser considerado uma obra-prima do cinema moderno, capaz de levar o espectador a refletir sobre quem somos, o que fazemos, ou porque agimos de tais formas inconseqüentes. Aliás, quem sou eu para dar um rótulo de “obra-prima” a algo, ou dizer o que é inconseqüente? Ao dar um rótulo a qualquer coisa, inevitavelmente, estarei exposto a críticas ou elogios, e assim seguirá o tal balaio dessa sociedade alienada em que vivemos. Considerando que todos os conceitos da vida são relativos, termino esta análise com uma pergunta que merecer ser analisada após ver “Crash”, mesmo que sua resposta nunca venha à tona: “Quem somos nós?”.

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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