Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 04 de julho de 2005

Doutor Jivago

“As revoluções duram semanas, anos; depois, durante dezenas e centenas de anos, adora-se, como algo de sagrado, esse espírito de mediocridade que as suscitou”. Boris Pasternak

Após 40 anos de sua primeira exibição, Doutor Zhivago é uma obra-prima da cinematografia mundial. E com merecido aplausos, diga-se de passagem. Mais um grande sucesso da filmografia do premiado David Lean (o mesmo de Grandes Esperanças, Lawrence da Arábia, A Ponte do Rio Kwait, Passagem para Índia, dentre tantos outros), Doutor Zhivago narra a história de um homem que amava duas mulheres, de forma intensa e sincera, sob o cenário violento das divergências ideológicas e políticas entre o liberalismo burguês e o socialismo dos sovietes na conturbada Rússia, às vésperas da Revolução Bolchevique de 1917.

Inspirado no romance de Boris Pasternak, Lean levou às telas um filme que, a meu ver, pode ser considerado uma das mais fiéis adaptações da literatura para o cinema. Para escrever o roteiro, Lean convidou o excelente dramaturgo Robert Bolt, que já havia trabalhado para David Lean no filme “Lawrence da Arábia”. O que poucos sabem é que o livro que deu origem ao filme foi altamente condenado na Rússia. Boris Parternak (que recusou o Prêmio Nobel de Literatura por este livro) chegou várias vezes a ser chamado de traidor da pátria. Logo ele, que com seus 15 anos de idade vem começar a tomar nota do horror que foi a Revolução Russa, para mais tarde escrever, já com toda a experiência e sabedoria provinda de seus estudos filosóficos em Moscou e na Alemanha, um poético e sublime romance em defesa da paz. Impedido de publicar o romance na Rússia, o livro só veio a se tornar um best-seller mundial graças a intervenção de um contrabando local que levou os manuscritos até um editor em Milão, Itália. Se não fosse isso, estaríamos até hoje sem ter tido o deleite de assistir a esse filme, captado de imediato pelo olhar visionário do produtor Carlo Ponti e do presidente da MGM, Robert H. O’Brien, que juntos, levaram a história ao grande cineasta, David Lean.

Para contar uma história que se passa ao longo de 40 anos, David Lean exigia rostos novos, mas memoráveis, capazes de exprimir a juventude nas primeiras seqüências e a maturidade nas últimas cenas, de igual proporção. Através de uma criteriosa seleção de atores, Lean reuniu um elenco de promissores talentos: o egípcio Omar Sharif recebe o papel de Yuri Zhivago. “E eu pensava que seria o Pasha”, comenta o ator. Geraldine Chaplin interpreta Tonya, a doce e sempre apaixonada esposa de Yuri. A estonteante Julia Christie faz o papel de Lara, o turbulento amor de Zhivago, por quem os girassóis nascem e murcham, conforme a sua presença. Tom Courtenay é Pasha, um jovem idealista convicto, marido de Lara, que mais tarde, vem a se tornar um temido líder bolchevique. Sob os braços da Revolução, esse jovem idealista entrega sua vida sem temor nem renúncia.

Mas não só de rostos novos se faz o elenco deste filme. Nomes notáveis como o de Rod Steiger no papel de impiedoso Komarovsky, o perseguidor de Lara; o de Alec Guiness como Yevgraf, o misteriosos meio-irmão de Zhivago; além de Sir Ralph Richardson (padastro de Zhivago) e de Siobhan McKenna (mãe de Tonya), o filme garante a deliciosa harmonia necessária a um grande filme. Além do maravilhoso elenco, a equipe técnica de “Doutor Zhivago” é igualmente impecável. Desde a direção de arte (capaz de transformar um território hispânico no gélido Moscou), até a direção de fotografia, que imprimiu na película as luzes e cores das paisagens e dos interiores mais belos possíveis, em consonância com o que era narrado no romance. Acredito que em matéria técnica, a direção de fotografia chega a ofuscar os demais departamentos. As mudanças de estações do ano para determinar uma passagem no tempo, como, por exemplo, as cenas de inverno serem rodadas como num filme em preto e branco, e a alternância disso para uma tonalização ora dourada (lembrando das seqüências dos girassóis) ora prateada. A terceira grande cor presente no filme é o vermelho, capaz de exprimir todo o horror daquele momento.

A música de Maurice Jarre, também inesquecível, que contribuiu, e muito, para a colocação de “Doutor Zhivago” em um dos mais altos pedestais da Cinematografia Universal, também não pode ser desmerecida (nem poderia, pois só o “tema de Lara” é ainda lembrando como mais uma dos maravilhosos exemplos das mais belas trilhas sonora feitas pra Cinema). Tudo isso contribui para o engrandecimento de “Doutor Zhivago” ao hall dos clássicos inesquecíveis.

Cada momento do filme é antológico, rico em emoções e significados. David Lean sempre foi conhecido como o grande cineasta das metáforas, e isso fica bem evidenciado no filme. As seqüências sob a lua, as folhas levadas pelo vento, as bandeiras, os trens, e, acima de tudo, dos girassóis, não são gratuitos. A vela na janela (bem recorrente na película) e a presença da balalaica (dada ao pequeno Zhivago no enterro de sua mãe, e herdado pela filha, no final do filme) são outros dos vários exemplos que poderiam ser motivos de aprofundadas análises do discurso fílmico.

De fato, é um filme profundo, poético e universal, tal qual o romance de Pasternak. Merece ser sempre revisitado e apreciado pelas novas gerações de cinéfilos, de fãs de Star Wars a fãs de Ridley Scott. “Dr. Zhivago” é uma das mais felizes provas de como um épico deve ser feito. De forma viva e humana, tal qual o personagem Jivago (que em russo significa “aquele que vive”), consequentemente, passível de falhas, mas imortal por seus feitos e impressões. É assim que deve ser.

Sem mais comentários

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

Compartilhe

Saiba mais sobre