Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 13 de abril de 2005

Feios, Sujos e Malvados

Assistam ao filme, rebolem pro alto este artigo, e tirem suas próprias conclusões. Afinal de contas, para Ettore Scola, “Um filme não tem o poder de mudar uma realidade, mas pode convidar ao questionamento".

Embasbacada, envergonhada, abobalhada… são diversos os adjetivos que poderiam traduzir minha reação após assistir o filme. Mas o adjetivo mais apropriado talvez seria curiossssa. Sim! Fiquei muito curiossssa. Palavra-chave e perigosssssa que ou pode levar muitos leigos de cinema a seguirem a vereda mais curta do conhecimento, que se faz pautada na opinião de “conceituados” críticos de cinema; ou a seguirem a vereda mais longa, estilo Guimarães Rosa. Mais uma vez a Caxias aqui preferiu percorrer o caminho mais longo, o que me permitiu assistir a alguns filmes do genial Scola, rebolando pro alto as sinopses estampadas nas contra-capas das fitas.

E sem nenhuma expectativa fui assistir ao filme ao qual fui incumbida de fazer um “artigo”. PAUSA. Fita na mão e sinopses no chão. EXPLOSÃO. Finalmente o Play. SILÊNCIO. 5 minutos. Mais silêncio. Outros 5 minutos e a sonora pergunta: “Isso é na Itália?”. EXPLOSÃO. E não é que é?! Uma Itália desconhecida, que nos mostra um favelaço tão degradante quanto o nosso. Uma Itália desconhecida, talvez até pela própria Roma, bela e civilizada cidade que vira as costas, indiferente, à realidade de seu país. EXPLOSÃO. Novamente, o PLAY.

Uma inocente e delicada menina nos conduz até um dos vários casebres do lugar. Tão pequenininho…De repente, um susto. 5,10,15… umas 20 pessoas amontoadas na pequenina casa, espremidos e espalhados em cada minúsculo canto, feito lixo. Um lixo móvel, digamos assim. Enquanto cinco dormem no canto, outras seis estão copulando, feito ratos no cio, em outro. Um completo e angustiante caos humano, já conhecido por muitos de nossa brava gente brasileira.

Do amontoado lixo humano, aparece uma figura em especial. O patriarca Giacinto, um velho autoritário e sujo, cego de um olho e neurótico, mas muuuuuito neurótico. Chega a dormir com uma fortuna (leia-se 1 milhão de liras em moedas aglutinadas em um saco transparente), escondidas nas próprias ceroulas, temendo o roubo de seu valioso tesouro pelos próprios parentes. PAUSA. Conheço esse rosto… "Ahh, é o Nino Manfredi que atuou em ‘Nós que nos amávamos tanto’. Apesar da péssima maquiagem envelhecedora, nada ofuscou a atuação deste brilhante ator. (…) SILÊNCIO (…) Atuação?!!! EXPLOSÃO. Depois, o PLAY.

São cinco, dez, quinze, vinte pessoas disputando a auto-sobrevivência… todas sob o mesmo teto. “Parente é como botina, quanto mais próximo, mais amofina”, dispara o velho Giacinto, e com toda a razão. A presença e a tentativa de sobrevivência daquelas pobres e miseráveis criaturas chega a ser tão insuportável que nem mesmo elas se agüentam. (…) PAUSA. “Ceguem seus olhos com cal vivo”: conselho do velho Giacinto que extrapola aos próprios parentes. Seria muito atrevimento meu em deduzir ser este conselho um recado do mestre Scola, ex-militante do Partido Comunista Italiano, aos seus indiferentes compatriotas (leia-se a nova geração de cineastas italianos)?!?!? EXPLOSÃO. (…) Silêncio. “Tudo é política, até mesmo o desenho mais inócuo da Disney”, desabafa Ettore Scola. BIG EXPLOSÃO.

Em "Feios, Sujos e Malvados" (Brutti Sporchi e Cattivi – 1976), o diretor Ettore Scola nos expõe a algo muito mais caótico do que a numerosa família de Giacinto que, a todo o momento tenta roubar-lhe seu 1 milhão de liras. Scola na verdade constrói, com o melhor da tradição neo-realista, uma crítica debochada às desigualdades sociais italianas, abusando, para isso, de um humor-negro e agressivo, capaz de chocar os mais desavisados com as inúmeras cenas de violência, nudez e escatologia que permeiam todo o filme. “Que são todos os meus filmes? O reflexo da formação do jovem meridional que eu era, vindo a Roma depois de ter tido contato com marginais e oprimidos” , fala o grande Scola, notadamente marcado pelos seus filmes poéticos e polêmicos (politicamente falando).

Novamente o PLAY. Outro choque. A menina doce e bela do início (que chega a lembrar a loirinha angelical de La Dolce Vita, de Federico Felinni) tranca outras crianças em uma espécie de galinheiro, onde podemos ver de um lado, algumas crianças negras, e de outro, as mais claras. Um aparthaid natural do inóspito ambiente. “A única coisa que devemos ter medo é do próprio medo”, fala o então presidente americano Roosevelt a um programa de televisão atentamente assistido pela curiosa velhinha e matriarca da família de Giacinto. PAUSA. A temática dos velhos que se alienam pela televisão chegou-me a lembrar de A Liberdade é Azul, de Kieslowski. Quem ainda não viu, fica como sugestão. PLAY.

“Eletrodomestique-se… o mundo a cores em sua casa… compre, gaste, e será feliz”. Eis algumas das mensagens que compõe um hilário e surreal sonho do muquirana Giacinto. Todavia nada, nem mesmo a aparição de uma prostituta que vem a lhe roubar o coração (se é que tem), é capaz de enfraquecer a atenção do velho mão-de-vaca ao seu rico (e sujo) dinheirinho.

Outro ponto curioso. Em um almoço em família, Giacinto e parentes passeiam na cidade numa espécie de marcha panfletária. Ao meu ver, é justamente nessa seqüência que o estilo neo-realista chega a atingir o seu clímax: da boléia de um caminhão, a ilusão da realidade explode porque todos os personagens se parecem, de alguma forma, iguais. Harmonia momentânea que se interrompe no momento em que Giacinto degusta alegremente o prato de macarrão feito “carinhosamente” por sua amada mulher. EXPLOSÃO. Aliás, muitas explosões, agora no estômago do avarento velho Giacinto. Tormento indescritível. STOP.

Para finalizar o presente “artigo”, lembro a cena final que, por mais simples que seja, vem, ao meu ver, ser a mais forte que as demais. Obviamente, não vou dizer como termina, mas posso me arriscar em dizer a mensagem que percebi: Ettore Scola, ao fazer essa belíssima pérola do cinema universal, me mostrou, através do carregado humor-negro, que seus pobres, sujos e ignorantes personagens, mais uma vez, são corrompidos pelo dinheiro, e que as crianças, a quem depositamos a esperança de dias melhores, na verdade estão presas neste mar de lama de forma que, dificilmente, consiguirão perceber, algum dia, seus potenciais.

A todo caso, assistam ao filme, rebolem pro alto este artigo, e tirem suas próprias conclusões. Afinal de contas, para Ettore Scola, “Um filme não tem o poder de mudar uma realidade, mas pode convidar ao questionamento". É essa a grande função do cinema. "Por isso prefiro não ter finais muito fechados, nem heróis. É isto: meu cinema é um cinema sem heróis", finaliza o desconhecido, e agora inesquecível, grande mestre italiano, Ettore Scola.

Sem mais comentários.

STOP/EJECT.

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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