Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 05 de março de 2006

Flores Partidas

Com um roteiro profundo e bem construído, Flores Partidas é repleto de simbolismo, pitadas de humor e um elenco respeitável. O novo filme dirigido e roteirizado por Jim Jarmusch (Sobre Café e Cigarros) vem para aqueles que estão preparados para ver uma trama lenta, reflexiva, de auto-análise do personagem principal Don Johnston, vivido por Bill Murray (Encontros e Desencontros).

Flores Partidas conta a história de um homem aparentemente amargurado e entediado com a vida, que começa a trama sendo deixado pela namorada Sherry (Julie Delpy), alegando que o ex-empresário do ramo de computadores a tratava como uma amante, mesmo não sendo casado. Neste meio tempo, uma carta não assinada e datilografada com tinta vermelha em papel rosa chega na casa de Don, avisando que um provável filho que ele teve com uma das suas mulheres do passado estava a sua procura.

Mesmo com a notícia da paternidade, a princípio ele não fica curioso devido ao tédio latente na sua vida, até que seu vizinho Winston (Jeffrey Wright), personagem cômico do filme e adorador de histórias de investigação, resolve incentivá-lo a procurar as possíveis mães desse possível filho e saber mais sobre a tal suspeita. Talvez pela vida monótona e sedentária que Don levava, ele decidiu remexer seu passado e buscar a verdade, mesmo porque não teria nada a perder. É aí que a aventura de cidade em cidade começa e Don entra em um processo de auto-análise e de recordações. Ele vai a procura de cinco mulheres levando flores rosas e procurando indícios de qual delas seria a mãe do seu filho, mas a investigação fica um pouco de lado e ele acaba percebendo que ele podia ter mudado tanto quanto essas mulheres, cujas vidas estão estruturadas.

As flores não estão presentes somente nos momentos de visitas às ex-namoradas. Na casa do protagonista, ele observa várias vezes um vaso de flores que vão murchando e se desmanchando à medida que o tempo vai passando, sendo possível fazer um paralelo com a vida dele, desgastada por sua indiferença às pessoas e ao mundo e praticamente impossível de consertar, já que o tempo foi o grande responsável por deixá-lo sozinho e amargurado.

Para quem achava que o roteiro se resumia a essa procura ao filho, o longa vai além disso. Com a busca, o personagem misterioso dá margem para que ele próprio se conheça e avalie toda a sua trajetória de vida. Em cada visita feita a uma ex-namorada, ele tem motivos novos para questionar no seu íntimo como teria sido sua vida se não tivesse o costume de usar as mulheres por usar, tratando-as com indiferença. Tal indiferença se reflete no vazio do personagem principal e nas suas expressões e gestos, já que os diálogos nem sempre são necessários para dar densidade às cenas.

A trilha sonora pesada e, algumas vezes, irritante é essencial para transmitir o tédio do personagem, suas poucas perspectivas, sua vida destinada a ficar em casa, vendo televisão ou escutando músicas insignificantes. A direção cumpriu seu dever com tamanha responsabilidade, talvez pela harmonia do elenco com o diretor. Jarmusch anunciou que o personagem principal foi escrito especialmente para sugar as habilidades dramáticas de Bill Murray, e parece que conseguiu. Depois de ter uma reputação de comédias, Murray mostra que é bom em tudo que faz. Vale ressaltar também o brilhantismo da atuação das belissimas Sharon Stone (Laura Miller), Jessica Lange (Carmen), Tilda Swinton (Penny).

Com um roteiro complexo, o filme pode desagradar alguns que esperam histórias culminando em finais clichês. A partir do momento que passamos a enxergar toda a vivência de Don e sua crise existencial com um olhar mais apurado, podemos pegar vários detalhes que podem ser adaptados para nossa realidade pois talvez cada um tenha um pouco de Don dentro de si, se tratando daquela angústia de saber se estamos vivendo certo, se não estamos desperdiçando tempo nos nossos atos, ou se o que fazemos da nossa vida é o suficiente. Como é filosofado pelo protagonista, ‘o passado já passou; o futuro ainda não chegou; só o que resta é o presente’, e mesmo assim os três estão interligados e é de nossa responsabilidade saber viver cada etapa.

Flores Partidas não venceu o Grande Prêmio do Júri no último Festival de Canes em vão. Para um roteiro que foi construído em duas semanas e meia, o filme torna-se imperdível e pode tocar a sensibilidade do público de formas diferentes, talvez pelas experiências pessoais e pela bagagem que carregamos durante nossa vida. Não importa se o filme corre, corre e parece que não sai do lugar. É impossível sair indiferente da sala do cinema ou sem pensar um pouco mais sobre nosso modo de viver.

Diego Benevides
@DiegoBenevides

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