Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 14 de fevereiro de 2006

Johnny & June

Um filme bem conduzido, que apesar de não apresentar novidades em sua história, se segura bem devido as excepcionais interpretações de Joaquin Phoenix e Reese Whiterspoon, esses sem dúvidas nos melhores papéis de suas carreiras. Mais do que um bom filme sobre música, uma grande história de amor.

A trama mostra, em seqüência cronológica, os dramas que fizeram de Cash aquela figura soturna e infeliz: aos doze anos, perde o irmão que idolatrava num acidente traumático. A tragédia familiar só aumenta o desprezo que o pai já sentia por ele e transforma-se numa carga emotiva que irá assombrá-lo pelo resto da vida. O serviço militar é a desculpa para ganhar o mundo e, após uma temporada na Força Aérea, Johnny muda-se para Memphis e consegue gravar o primeiro disco, alcançando sucesso quase instantâneo. Logo, está dividindo o palco com astros como Elvis Presley e Jerry Lee Lewis. Inicia, ainda, uma bem-sucedida parceria musical e afetiva com June Carter, cantora que sempre admirou. Embora apaixonados, os dois passam muitos anos sem poder assumir uma relação pois já são casados com outras pessoas. Mas esse não é o maior dos problemas do cantor, que simplesmente não consegue superar seus traumas de rejeição e se afunda em álcool e anfetaminas. Só quando June fica a seu lado ele consegue retomar a carreira quase arruinada e obter a estrutura familiar que sempre buscou desesperadamente.

O roteiro de Gil Dennis, escrito em parceria com o diretor James Mangold (de “Garota Interrompida”) não se mostra muito diferente dos filmes biográficos de músicos a que estamos acostumados a ver: começamos vendo a infância pobre do astro, juntamente com um fato trágico (a morte do irmão) e o desprezo por parte do pai que perdura por boa parte de sua vida, seguido das dificuldades para conseguir seu espaço no cenário musical, dos problemas com drogas que marcaram a carreira de 90% dos artistas do fim dos anos 50 ao auge dos anos 70, sua volta por cima, e é claro, uma história de amor por trás de tudo isso. Nesse quesito – adaptação da vida de um astro para às telas – não há novidades. Tudo bem, pois se trata de um uma história real, mas se tentassem adaptar a vida de outro ícone musical da época, também não sairia algo muito diferente, pois suas vidas são por si só clichês.

Podemos claramente comparar a produção com o também correto “Ray”, em que todos os segmentos de narrativa do roteiro são mantidos. Às vezes parece desinteressante assistir a cinebiografia de um artista que não é tão conhecido em nosso país, mas esse não é o caso da vida de Johnny Cash. “Johnny e June” é um filme tocante por si só, sem apelar para sentimentalismos exagerados, nem às deturpações gratuitas do astro, que nos Estados Unidos é considerado um verdadeiro ícone da musical. Do contrário de “Ray”, o filme não possui aqueles momento em que só falta aparecer escrito na tela “Chore Por Favor!”, com aqueles flashbacks um tanto desnecessários. Nesse ponto, a direção simples de James Mangold não faz feio ao não querer inovar, seguindo apenas o que o roteiro induz, de forma cronológica, e sem apelos.

As apresentações musicais vistas no longa são dignas de elogios, visto claramente o esforço dos protagonistas (falarei deles mais adiante) em reproduzir com o máximo de fidelidade cada movimento e expressão corporal dos artistas no palco. São momentos instigantes, tanto para quem conhece ou não as músicas de Johnny Cash. Eu sou um exemplo de quem conhecia apenas duas músicas do cantor (as clássicas “Ring of Fire” e “Walk the Line”, que dá título ao filme), e após assistir ao filme, pretendo conhecer mais de sua carreira, e não só de sua vida. Essa com certeza é uma intenção de um filme musical biográfico. Mas e daí? Se conseguiu transmitir esse efeito, é porque o trabalho foi bem feito.

Lembrando da tal “história de amor”, ela não serve apenas como mais uma trama que serve para complementar o roteiro. Sim, “Johnny e June” é uma grande história de amor, apresentando a relação entre os protagonistas de uma forma nunca vista em um filme musical. A trajetória de Johnny Cash e June Carter para finalmente ficarem juntos, é algo que comove o espectador, transmitindo bem a mensagem de que se não fosse por ela, Johnny dificilmente teria deixado as drogas, e consequentemente, sua carreira (que já andava quase apagada devido seu problema) nunca mais seria a mesma e seu destino provavelmente seria o fundo do poço, sem o grande amor de sua vida. Admiramos não só a preocupação de June com Johnny, mas a persistência dele para conquistá-la, visto que durante toda a projeção, mais de vinte anos se passam e não há um relacionamento verdadeiro entre eles – apesar do sentimento mútuo -, devido uma série de barreiras existentes de ambos os lados, cuja principal delas é a resistência da própria de June, com medo de encarar as futuras conseqüências. Pode-se dizer que o filme é uma ótima representação daquele velho ditado “Por Trás de Todo Homem Existe Uma Grande Mulher”.

Na parte técnica, o filme faz bonito do começo ao fim. Extremamente fiel à época, a fotografia, os cenários, os figurinos são retratados de uma maneira impecável. A edição também é primorosa, de forma que tudo se encaixa em seu devido lugar, e apesar de a história ser narrada de maneira cronológica, em momento algum parece cair no monótono, fazendo o clima crescer durante a projeção sem que os acontecimentos soem episódicos demais (um grande defeito constantemente visto em cinebiografias).

“Johnny e June” é um filme que possui todos os ingredientes bem distribuídos, mas a verdade é que se não fosse o espetacular desempenho da dupla principal, Joaquin Phoenix e Reese Whiterspoon, o filme não passaria de mais uma história bonitinha e futura “Sessão da Tarde”. É impressionante ver o esforço dos atores na busca pela essência dos personagens. Phoenix simplesmente se entrega de corpo e alma na hora de encarnar Johnny Cash, seja na hora de cantar, de mostrar seu elétrico desempenho no palco, na hora de mostrar seu lado fraternal, apaixonado, assombrado pela sombra do passado, angustiado e dependente de drogas…a interpretação de Phoenix deu toda a complexidade necessária ao personagem. Um ótimo exemplo da riqueza da performance do ator, é quando ele faz um teste para um produtor, e toca uma música escrita por ele enquanto pertencia a Força Aérea. Sua expressão facial, juntamente com o tom de sua voz, acumulam uma série de sentimentos como raiva e provocação, levando para aquele momento não só a sensação incômoda da letra da música, mas a revolta do cantor ao ter sua criatividade questionada pelo produtor.

Já Reese Whiterspoon, simplesmente não parece ser aquela atriz de comédias românticas, como “Legalmente Loira”, que estamos acostumados a ver. Seu desempenho se iguala ao de Phoenix em termos de riqueza (em minha opinião particular, até chega a superá-lo). A atriz igualmente encarnou June Carter com uma perfeição ímpar, e não só mostra o bom desempenho das aulas de canto, como transmite todo o sentimentalismo de uma personagem tão complexa. Por trás de uma garota rica, filha de pais famosos e que se apóia no bom humor para disfarçar o – pelo menos na visão dela, – talento limitado, Reese mostra com maestria que existe uma pessoa sem adaptação ao mundo machista que vive, rodeada de preconceitos por ter se divorciado duas vezes. Exatamente com medo desse conturbado mundo que vive, teme em se casar com Johnny Cash, mas não isso não a impede de lhe dar toda força no momento mais difícil de sua vida. Mais do que merecida as indicações ao Oscar para Joaquin e Reese.

Deixo minha indignação quanto a tradução do título original Walk the Line (algo como “Andar na Linha”), para “Johnny e June”, deixando a impressão de ser apenas mais um filme de romance que chega desapercebido nos cinemas. “Walk the Line” é o título mais do que perfeito, pois o filme se trata exatamente das dificuldades de Johnny em “andar na linha” e lá se manter, visto que sua vida foi marcada por altos e (muitos) baixos. Lembrando que “I Walk the Line” foi uma música escrita por Crash pensando exatamente em June, pois ela foi a pessoa que o ajudou diretamente na sua trajetória para se livrar das drogas e reerguer sua carreira. O filme é a história de Johnny, e "por acaso" mostra a importância que June teve em sua vida, resultando em uma das histórias de amor mais belas do cenário musical. Não é a história de Johnny e June. O mesmo erro foi cometido com o belíssimo pôster em arte gráfica (esse que vocês vêem acima. Desculpem, mas optei por deixar de fora o pôster nacional unicamente pela superioridade do original), sendo substituído aqui por uma foto do casal. Será que acham que tentando transmitir a imagem de um filme de romance propriamente dito, e não uma história de amor contida na história real de um ícone da música, atrai mais a atenção do público?

Por fim, “Johnny e June” é um filme bonito que soube abordar bem a carreira musical de Johnny Cash, conciliando com a grande história de amor com June Carter. Não é um filme marcante. Sua história não apresenta novidades, nem no estilo de narrativa nem no próprio roteiro, mas com certeza não irá decepcionar a quem assiste. Uma excelente opção para quem curte a união música-cinema, e para quem não curte, vale dar uma conferida, mesmo que por questão de curiosidade. As performances de Johnny Cash e June Carter..ops…Joaquin Phoenix e Reese Whiterspoon são dois grandes motivos para conferir o filme. Todo elogio que se dirigir a essa dupla será merecido.

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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