Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 30 de março de 2005

Não Se Mova

Penélope Cruz está diferente de todas as vezes em que a vimos. A moça está magérrima, com uma aparência de mulher que realmente já apanhou muito da vida. As sombras e roupas que usa, o batom... Tudo isso colabora na formação da personagem Italia, que, como diz Castellitto, “é um sapo que vira anjo”.

Timoteo (Sergio Castellitto) é um médico bem-sucedido, casado com uma bela mulher, e pai de uma menina de quinze anos. No hospital em que trabalha, em um dia que poderia ter sido como outro qualquer, uma jovem chega em estado grave após um acidente de moto. Ao verificar os dados da paciente, Ada, uma colega de trabalho de Timoteo, descobre que esta é a filha adolescente do amigo. Chocado com o que ocorrera, ele passa a confrontar-se com o passado, lembrando-se da época em que conhecera a mulher que poderia ter mudado a sua vida.

Essa mulher chama-se Italia, assim como a pátria dona deste filme. Italia é uma mulher sofrida, que trabalha como camareira em algum hotel de poucas estrelas. Ela vive em meio a entulhos, em uma casa que era de seu avô, vendida pouco antes de ele morrer. Timoteo, ao ter problemas com o carro, tenta uma ligação em um local próximo à casa de Italia. Por este não obter sucesso, a moça oferece o telefone de casa, um café, e algo ocorre. O médico passa a freqüentar a casa de Italia, que o aceita com carinho, apesar do seu comportamento estranho e agressivo.

Timoteo tem tudo na vida, mas se identifica com uma mulher que, aparentemente, não possui nada para lhe oferecer. Isso é revelado já no início do filme. Os escombros, o abandono em que vive Italia é o mesmo pelo qual passa Timoteo, lá por dentro, em sua alma. O amor pode ser encontrado no lugar mais inesperado, com a pessoa de nome mais incomum, com a personalidade mais incompatível. A esposa de Timoteo é uma mulher fina, bonita e inteligente. Italia é totalmente o oposto disso, e é nela em que o médico se encontra. É para Italia que o médico diz “non ti muovere”, aflito (a frase, no italiano, tanto significa “não se mova”, quanto “não vá embora”). Timoteo repete essa frase por mais duas vezes. Todas elas, em situações de desespero. O seu comportamento repugnante, ao violentar Italia, foi uma reprodução do que ele viu quando menino, no momento em que seu pai quebra um prato com comida para tentar intimidar a esposa. Um detalhe importante, que percebi logo no início do filme, e que veio a se confirmar em seu fim, foi a simbologia da personagem de Penélope Cruz. Italia significa o próprio país. Devassado, mas, ainda assim, de braços abertos para os seus filhos. Italia é dona de uma inocência e pureza infindas. Ela é a personagem mais humana e materna, apesar de tudo que já viveu.

Assisti Castellitto como ator, pela primeira vez, em “Simplesmente Martha”, uma produção européia lançada em 2001, em que ele atua como um cozinheiro italiano que se apaixona por uma outra cozinheira, que é alemã. Depois, nas locadoras, vasculhei um pouco do seu trabalho e encontrei “A Carne”, um longa-metragem polêmico, de 1991, italiano como só ele consegue ser. No filme, Castellitto é um pianista que vive em pé-de-guerra com a ex-esposa ao mesmo tempo em que encontra uma mulher dos lábios carnudos e sensuais, com quem passa a viver e a provar a sua carne. “Não se mova” é o segundo filme de Castellitto como diretor. O primeiro fora “Libero Burro” (algo um tanto bizarro como “Manteiga Livre”, no Português), inédito no Brasil. O cineasta também assina o roteiro de “Não se mova”, que elaborou ao lado de sua mulher, Margaret Mazzantini, que escrevera o livro no qual o filme é baseado. Penélope Cruz está diferente de todas as vezes em que a vimos. A moça está magérrima, com uma aparência de mulher que realmente já apanhou muito da vida. As sombras e roupas que usa, o batom… Tudo isso colabora na formação da personagem Italia, que, como diz Castellitto, “é um sapo que vira anjo”.

Torço para que filmes italianos sigam o exemplo de “Não se mova”, que, apesar da co-produção com a Espanha e o Reino Unido, é genuinamente italiano. Torço por filmes genuinamente espanhóis, alemães, franceses, mexicanos, brasileiros, argentinos… Filmes falados em sua língua oficial, que mostram o país como ele é, e que utilizam em sua trilha, prioritariamente, artistas de sua nação.

Muitos detalhes interessantes sobre o comportamento de Timoteo, da simbologia das atitudes dos personagens, foram discutidos no debate que aconteceu após o filme, que foi mediado por Ralfe Alves Bezerra (filósofo da FFB), e contou com a participação de Custódio Almeida (professor de Filosofia da UFC) e Lícia Valeska (professora de Sociologia da FFB). A platéia também participou da discussão de forma fervorosa, mostrando que este é um bom filme para ser analisado mais a fundo.

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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