Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 15 de fevereiro de 2006

Palavras de Amor

Um drama familiar um pouco fora do usual, que acaba tratando de temas bastante controversos e ainda incompreendidos como a religião.

O professor Saul é um pai de família judeu presente no lar e envolvido com as atividades dos filhos. Quando a caçula, Eliza, entra em um concurso de soletrar – modalidade um pouco desconhecida por aqui, mas tradicional nos Estados Unidos – o pai, percebendo o talento extraordinário da menina com relação às letras, passa a ajudá-la a se aperfeiçoar e aposta todas as suas fichas nela.

O que o professor Saul deixa de perceber (talvez propositalmente) é que sua família está se desintegrando. Seu filho mais velho começa a se envolver com cultos budistas e se afastar de casa e sua esposa, Miriam, passa a apresentar um comportamento estranho, que já existia há muito tempo. Enquanto isso, tudo o que mais importa para Saul é acreditar que a pequena Eliza é a detentora de uma habilidade divina relacionada a seu dom com as palavras.

O que teria tudo para ser mais um drama familiar manjado, vira em “Palavras de Amor” algo um pouco diferente. Por trás de cada personagem existe uma essência completamente distinta da que por eles é apresentada. Saul, o homem seguro e sábio, na verdade usa os membros de sua família como cobaias para sua vontade de controlar. Todos precisam viver de acordo com suas convicções que, na sua visão, é o que há de mais certo e absoluto no mundo.

É a partir daí que o filho mais velho, Aaron, inicialmente mostrado como um retrato dos desejos do pai, ao ser colocado parcialmente de lado com o advento do novo talento da irmã, percebe que não vivia por si próprio e se depara com uma diferente visão de mundo, com a qual tenta se integrar. Ao mesmo tempo em que isso acontece, também nos é mostrada a figura da mãe, Miriam, sufocada na prisão invisível que é a sua casa, que segue em direção à quase insanidade sem que ninguém perceba até que ela chegue ao limite.

A trajetória do filme é um tanto confuso, cabendo ao espectador a paciência de esperar os acontecimentos se encaixarem no momento certo. Seria, se podemos assim pensar, quase uma referência à desfragmentação que os próprios personagens enfrentam.

O talento peculiar da pequena Eliza, no fim das contas, acaba sendo o que gera essa turbulência na família e o que conserta a situação. Através da “elevação de espírito” que a garota consegue devido ao seu dom, a solução para “juntar os cacos” da sua família lhe aparece dando a entender que a união desse núcleo agora se daria de uma forma verdadeira e não sob as máscaras e disfarces de antes.

O elenco misturou veteranos e novatos dividindo o posto de protagonistas. Flora Gross, a atriz estreante que interpreta a garota Eliza mostra-se bastante talentosa e Max Minghela, que interpreta seu irmão, não deixa margem a críticas negativas. O veterano Richard Gere também conduz seu papel com maestria, mas é Juliette Binoche a dona da atuação mais marcante, dando vida à angustiada Miriam. Seus trejeitos e expressões chegam a causar desconforto ao espectador, passando magnificamente as sensações reprimidas pela personagem.

“Palavras de Amor” é mais um filme metafórico do que propriamente realista. É uma forma de dizer que muitas vezes nossas crenças nos cegam para o que está acontecendo ao nosso redor e fazem tão mal aos outros quanto a nós mesmos. Não é um filme indicado para aqueles que se satisfazem com narrativas rasas e lineares, mas é uma bela história que os mais sensíveis saberão apreciar.

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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