Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 04 de janeiro de 2006

Passagem, A

Observação: Essa crítica é recomendada para quem já assistiu ao filme ou aquelas pessoas que não se preocupam em ficar sabendo o final antes de assistir ao filme. Fica a seu critério ler ou não a matéria.

A Passagem é um filme desafiador, inteligente e incisivo. Possui uma riqueza de detalhes tão vasta, e uma trama tão complexa que faz com que cada espectador participe da história a sua maneira. É impossível chegar a alguma conclusão antes do final do filme e, ainda no final, é preciso muita perspicácia e atenção para concluir algo coerente.

Atenção, contarei o final! Se ainda não viu, não leia essa critica. Se ler, não veja, pois escancaro tudo e ele perderá totalmente a graça. Se quer impressionar os amigos, leia e depois vá ao cinema como se não soubesse de nada. Contudo, se você já assistiu e está angustiado, desesperado por entender o que diabos era aquilo, leia e encontre a paz.

É incrível o que acontece quando surge um filme que depende um pouco do raciocínio. Pessoas saem das salas de cinema no meio do filme, injuriadas, angustiadas, achando um absurdo uma trama sem pé nem cabeça como aquela. O problema é que o cinema transformou o entretenimento em algo tão passivo que o único trabalho que público tem é mover a mandíbula para mastigar a pipoca. Infelizmente, desacostumamos com o ato de interpretar algo que não venha absolutamente mastigado, e isso impede o êxito de obras primas como A Passagem.

Talvez tenha sido com isso em mente que a Fox deixou o filme mofando nas prateleiras por mais de um ano, até que tiveram a péssima idéia de lançá-lo como um thriller de suspense. A publicidade da produção soltou um trailer onde ela parecia seguir a onda de filmes metafísicos como Sexto Sentido e Os Outros. Isso atrai o público errado e causa um impacto muito negativo. Além do mais, muitos críticos parecem ter ido ao cinema com uma idéia já pré-concebida, que obviamente não se concretiza. Ou mesmo, são antas que não compreendem bulhufas e assim soltam seus marimbondos cegos, surdos e mudos.

Bom, mas falemos do que interessa. A história em si é complexa e parece não fazer qualquer sentido. Todavia, em segunda análise, ficamos muito felizes quando conseguimos juntar os pauzinhos e compreender tudo (e não fica um furo sequer). Sam Foster (Ewan McGregor, de A Ilha) é apresentado a nós como um psiquiatra que está cobrindo sua colega por algumas semanas. Seu primeiro paciente é um jovem chamado Henry Letham (Ryan Gosling, de Diário de uma Paixão), um estudante de belas artes que fica muito desconcertado por sua psiquiatra estar de licença. Henry volta num momento em que não tem um horário marcado e, entre outras coisas, anuncia que irá cometer suicídio em três dias, em seu vigésimo primeiro aniversário, em homenagem a um pintor que admira, exatamente como este o fez. Quando o tempo passa e o dia do suicídio se aproxima, Sam tenta encontrar pessoas ligadas a seu paciente problemático. Ele encontra a mãe de Henry, uma estranha mulher que já havia morrido há algum tempo, acompanhada por um cachorro que o ataca, o qual já estava morto há anos. Há um momento que Henry encontra Sam jogando xadrez com um cego e Henry o chama de pai, mas o cego vai embora. Depois Henry vai até a casa dele, mas ele ainda não o reconhece como filho. Então Henry coloca a mão sobre os olhos do homem e o cura da cegueira. A namorada de Sam, Lila (Naomi Watts, de King Kong), uma antiga paciente que tentou suicídio e ainda sofre de depressão, sente que conhece Henry de uma maneira que Sam nunca poderá conhecer e oferece sua ajuda.

Com o passar do tempo, ao invés das coisas clarearem, a história se torna cada vem mais impenetrável. Vemos uma série de coisas sem sentido acontecerem ou re-acontecerem, o tempo passa repetir duas, três, quatro vezes um pequeno momento. Contudo, várias coisas parecem ser as chaves para uma conclusão no final. Uma delas é que existe um número limitado de pessoas na história que está passando. Assim, vemos a mesma pessoa sendo dois personagens diferentes e em momentos diferentes na trama. Dúvidas sobre identidades aparecem e uma grande angústia e terror surgem quando a realidade aos poucos se desfacela.

O que está realmente acontecendo no filme é demonstrado pela maneira completamente controlada das imagens e as pistas que elas contém. Identidades se fundem ou dividem, pessoas se movem de um lugar ao outro numa técnica que funde as tomadas, costurando todas as cenas em uma enorme bricolagem. É como se o tempo do filme fosse exatamente o tempo em que acontece e não existisse intervalo entre as cenas, as cenas são os únicos acontecimentos, como um sonho (esse é o caminho). Há momentos em que uma escada em espiral desce infinitamente em uma seqüência incrível, angustiante, e mesmo assim leva ao início em apenas um lance. O tempo se parte e transita constantemente, assim como lugares. A imagem importante nem sempre é a cena central, muitas vezes o que se passa no fundo é o que determina a seqüência. A demanda que tudo isso gera na audiência é incrível, principalmente numa indústria em que as idéias vêm todas pré-mastigadas.

No final do filme, apesar de tudo o que Sam fez e apesar de estar diante de Henry, na ponte do Brooklin, ele não pode impedir o suicídio do garoto. Neste momento a imagem é muito nebulosa, a câmera gira em volta de tudo em turbilhões e um efeito de grande desorientação é sentido. Henry acaba por dar o tiro na boca e Sam não faz nada para impedir, correspondendo à frase de Henry que “Já é tarde demais”.

O que está acontecendo então? Bom, o filme começa com uma batida de carro numa ponte, a mesma ponte do final onde Henry suicida. Tudo é meio confuso, Henry aparece caminhando na ponte, mas então Sam acorda e tudo era um sonho do psiquiatra que vai iniciar seu dia atendendo Henry como descrito acima. Trechos do acidente se repetem algumas vezes ao longo do filme, em meio aos acontecimentos cada vez mais absurdos e nebulosos. Quando no final Henry se mata, ele cai sobre a ponte. Nessa hora, a batida de carro se repete, desta vez mais nítida, mostrando Henry ao volante, seu pai, mãe e namorada no carro. O corpo do garoto é arremessado para fora do carro e cai na mesma ponte. Os outros carros param, Sam estava dirigindo atrás e vem acudi-lo. Lila também aparece e diz ser enfermeira. Nesse ponto surgem todos os personagens da história anterior, que na verdade são as pessoas que se ajuntavam em volta do moribundo. Ele fala algumas coisas, delira, pede Lila em casamento e morre.

O diretor faz, na verdade, é contar a mesma história duas vezes. Comecemos então da segunda. Um garoto dirige seu carro com sua namorada, a quem pedirá em casamento, seu pai e sua mãe. Enquanto eles conversam, o pneu estoura, o carro bate e todos morrem, menos o motorista que é arremessado para fora e acudido pelas pessoas que passavam no local. O jovem que está caído no asfalto sofreu uma grave lesão cerebral e está entre a vida e a morte, assim, ainda com alguma consciência de tudo que perderá da vida. Ele ouve as pessoas comentando que todos os outros passageiros estão mortos e delira em um misto de culpa, medo, angústia e fantasia, até o inevitável momento de sua morte. Assim, a primeira parte do filme é o delírio do garoto, sendo delírio uma patologia psiquiátrica muito bem descrita como a tentativa de auto-proteção, uma fuga diante de uma realidade massacrante, através da criação de uma realidade própria, mesclando elementos reais e imaginários. Cada nuance do filme revela a confusão e o paralelo entre a realidade e fantasia, como a história da aliança e do noivado. Se eu fosse abordar cada uma teria que escrever um livro, mas se você prestou um pouco de atenção no filme isso fica muito claro.

A primeira vez em que a história é contada, a do delírio, começa com a batida de carro. E toda a trama que se desenvolve ocorre em tempo de pensamento, sem muito compromisso com a coerência. As cenas amarradas umas às outras, lugares uns se transformando nos outros, um ambiente onírico. Após o suicídio o acidente passa novamente e a mesma coisa se passa em tempo real, por fora da cabeça do pobre moribundo Henry. Tudo é rápido, os três dias do “sonho” de Henry não duraram mais que alguns minutos, mas ainda assim o diretor nos dá grandes pistas para descobrirmos o que aconteceu na realidade. Então Henry morre e pronto, aquele mundo estranho morre com ele e as coisas acontecem somente como são na verdade, onde Sam acabou de conhecer Lila e a chama para tomar um café.

É um ótimo filme. É maravilhoso ter que pensar dentro do cinema. Um fato engraçado é que quando assisti, na sala tinha um bando de adolescentes de férias fazendo a maior bagunça, barulho e tal. Algumas pessoas mais estressadas chegaram até a chamar os seguranças. Mas com o tempo o filme se encarregou de angustiá-los e assustá-los, desafiando aquela idéia de realidade que tinham, e fazendo com que ficassem quietos, amuados. Quando saíram estavam meio calados e pensativos e ouvi uma menina comentando, meio perturbada: “Nossa, num entendi nada!”.

É um filme para adultos. Cansativo, meio paranóico e angustiante, mas a compensação de compreender é uma sensação indescritível, além da belíssima fotografia e dos atores sensacionais, o que nem cheguei a comentar pois achei meio irrelevante diante de tudo. Sim, dez estrelinhas pra ele, e dez pra você se conseguiu chegar até aqui, você também merece.

Leonardo Paixão
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