Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 09 de julho de 2006

O Senhor das Armas (2005): um filme que dá gosto de assistir

Uma excelente realização. É possível fazer um cinema inteligente, com efeitos especiais, com boas atuações e, principalmente, com muita informação. Um filme altamente recomendável.

O novo filme de Nicolas Cage é muito corajoso. E a Alpha Filmes teve também muita coragem de lançar esse filme às vésperas do referendo sobre a proibição do comércio de armas, que aconteceu no dia 23 de Outubro de 2005. Coragem porque ele é tendencioso. Coragem porque mostra o que uma arma de fogo pode fazer na mão de pessoas mal-intencionadas. Coragem porque mostra uma realidade freqüente, principalmente, em nosso país. Estes são uns dos pontos que abordarei, discutirei e sobre os quais farei reflexões no decorrer dessa crítica.

Nicolas Cage interpreta Yuri Orlov, um homem que deixa a União Soviética e vai para os Estados Unidos com sua família se passando por judeu. Após se tornar um membro das Nações Unidas, ele percebe que o negócio de vender armas ilegais para estrangeiros pode ser lucrativo. Com o fim da Guerra Fria, ele e seu irmão, Vitaly (Jared Leto) passam a fornecer todo tipo de armamento para o apático exército russo. Eventualmente, Orlov deve pagar por seus atos, podendo ser a sua família a vítima. Enquanto isso, Orlov também passa a ser perseguido por Jack Valentine (Ethan Hawke), um agente da Interpol que há anos procura por este vendedor de armas.

Estaria mentindo se dissesse que fui atraído para assistir esse filme por causa de história ou de sua premissa. Estaria falando a verdade se dissesse que os dois principais responsáveis para que assistisse a esse filme foram Nicolas Cage (que eu, particularmente, acho o melhor ator de Hollywood) e aquele pôster extremamente bem trabalhado. No final do filme, tudo vale a pena. O ator, a história, sua premissa, direção (principalmente) e o arsenal de balas que compõe o pôster e o próprio o filme.

“O Senhor das Armas” é polêmico. Tem um grande senso de humor. Não o humor convencional, mas um humor negro, difícil de se ver por aí em filmes “hollywoodianos”. A principal qualidade do filme foi não ter medo de expor certas verdades, que todos sabem, mas dificilmente conseguem assumir, muito menos expor. É lógico que percebemos muitas técnicas para atração do público em busca de entretenimento, mas o conteúdo é extremamente pertinente.

O nível da obra é refletido na cena inicial, onde você acompanha, com muita perícia, a fabricação de uma bala. Desde a sua real criação, desde o seu alojamento de caixas e distribuição por facções pelo mundo todo, até morrer em uma arma com o destino certo: a cabeça de uma criança indefesa. Depois desse show visual e impactante, vemos o personagem principal em meio à destruição e muitas balas ao chão. Ele faz o seguinte questionamento: “Existem mais de 550 milhões de armas de fogo em circulação no mundo. Isso significa uma arma para cada 12 pessoas. A única pergunta é: como armar as outras 11?”. Sim, ele é cara pau. Sim, ele não tem vergonha de mostrar que este é seu trabalho e que sua real qualidade está em vender armas. E sim, o carisma da personagem permanece durante todo o filme. Nós conseguimos perceber que aquilo que ele faz é ilegal, mas não conseguimos torcer contra. Nicolas Cage ajuda para que tenhamos este sentimento. Ele está impecável neste filme. Cínico como poucos, sentimental e frágil, como qualquer ser humano. Como já disse, também está extremamente carismático, fator já habitual de seus personagens em outros filmes.

A reflexão que podemos fazer é a seguinte: O que é que mata? A arma de fogo ou o homem? Esta é uma reflexão que o personagem de Cage faz muitas vezes durante filme. Se suas armas são usadas para o mal, isto não é problema dele. Ele está lá, fazendo o seu trabalho, o que ele acha que é certo. Ao ser questionado sobre deixar de vender armas para que as guerras acabem, ele responde, sucinto: “Se eu não vendo, chega outro e vende”. A questão do filme é o comercio. A venda ilegal de armas para sustentar as guerras ou domínio territorial. É como ele diz: “Você entra no ramo de restaurantes porque ‘as pessoas sempre precisam comer’. Foi nesse dia que percebi que meu destino era satisfazer outra necessidade humana básica”. Ele fala sobre a defesa. Sim, a arma é instrumento de defesa em vários lugares do mundo. É errôneo o pensamento de que com uma arma em mãos você está protegido. Às vezes, ao ter uma arma em casa, você pode ter a sensação de que está protegido, mas em termos estatísticos, a probabilidade de você acertar alguém com sua arma de fogo é mínima.

Andrew Niccol, que já mostrou sua inteligência em outros dois bons filmes (“Gattaca”, “S1m0ne”), mostra aqui a sua competência escrevendo e dirigindo. É lógico que o longa tem muito de sua opinião e ficção, mas boa parte dele vem de pesquisas e números precisos. Às vezes lembramos de Michael Moore, quando ele mostra em “Tiros em Columbine” alguns pontos importantes sobre a indústria bélica norte-americana. Um ponto importante é que o diretor consegue mostrar certas realidades, principalmente, em países africanos. A forma como tudo acontece está bem detalhada no filme e vale a pena dar uma conferida.

Pagam o filme a tentativa do personagem principal em explicar que seu negócio é legal e que ele não tem culpa se o que ele vende é feito para matar. Fora as alfinetadas nos EUA, como, por exemplo, quando ele diz que o mais poderoso traficante de armas do mundo é o governo dos Estados Unidos. Yuri Orlov (Nicolas Cage) conhece pessoalmente quase todos os déspotas, ditadores e senhores da guerra do planeta e, às vezes, os Estados Unidos precisam de traficantes como Yuri para enviar armas a regimes que eles não poderiam apoiar abertamente. Por isso as chances de ele se dar mal nesse negócio são mínimas. Quem sofre as conseqüências do seu trabalho é quem está ao seu redor, como sua esposa Ava Cordova (a linda Bridget Moynahan, em uma participação pouco presente, já que vemos apenas a visão de Yuri da mulher perfeita, e não realmente os anseios e vontades da mulher) e seu irmão Vitaly Orlov (interpretado por Jared Leto), que é considerado a ovelha negra da família. Como concorrente de Yuri na venda de armas temos Simeon Weisz (o Bilbo Bolseiro de “O Senhor dos Anéis”, com pequenas aparições).

O melhor fica para o final. Nos créditos aparece a seguinte mensagem: China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia são os países que mais gastam e mais lucram com a indústria do armamento. São eles também os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), que tem o dever de manter a paz e a segurança mundial. O que podemos pensar disso? Hipocrisia? Hum…

Parabéns pela realização corajosa e ainda mais por colocar os EUA em seu devido lugar, sem medo de repressão ou de problemas futuros. É possível fazer um cinema inteligente, com efeitos especiais, com boas atuações e, principalmente, com muita informação.

Jurandir Filho
@jurandirfilho

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