Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 02 de abril de 2005

Tão Longe, Tão Perto!

Como a lição de um olhar, o que ficou para mim é que, apesar de tender a fugir de tudo aquilo que de ruim vejo na mídia e nas pessoas que me rodeiam, devo antes de tudo abrir bem os meus olhos para tentar enxergar a realidade de modo que talvez possa retomar a pureza de meu olhar sobre o mundo.

“Os olhos são a luz do corpo. Se os olhos forem bons, o corpo será luminoso. Mas se forem maus, o corpo estará em trevas”. É com esta citação de Mateus (VI, 22) que Wenders inicia o filme “Tão Longe, Tão Perto” (“In Weiter Ferne, So Nah!” – 1993). Fruto de um projeto de continuação do poético e inesquecível “Asas do Desejo” (Der Himmel ünder Berlin – 1987), “Tão Longe, Tão Perto!” traz de volta a maioria do elenco de outrora, incluindo as mesmas figuras dos anjos de Berlim que continuam prestando atenção a todos os seres humanos que habitam aquele lugar.

Ao contrário de Damiel (Bruno Ganz), que desiste de ser um anjo após se apaixonar pela bela artista circense Marion (Solveig Dommartin), o protagonista Cassiel (Otto Sander) continua sendo um guardião, mas que agora anseia em tornar-se mortal para amparar, com mais “eficácia”, a humanidade. “A missão de Cassiel é a de descobrir como as pessoas se vêem e se ouvem e como percebem o mundo com a finalidade de melhor agir nele…”, explica o cineasta alemão, que finalmente dá a Otto Sander a chance de ser o anjo que se torna mortal (vontade já manifestada nas gravações de Asas…). “O anjo das lágrimas” (explicação do nome Cassiel) quer entender por que as pessoas são tão apegadas com o terreno. Daí o porquê de sua confissão à amiga (e também anjo), Raphaela: "as pessoas não conquistaram o mundo, o mundo é que as conquistaram." E como moral, Mickhail Gorbachev (que faz uma rápida, porém interessante participação no filme) cita Fyodor Dostoevsky: "o sentido da vida humana não se encontra no fato de que um vive, mas sim para quê o mesmo vive."

O filme demonstra a sensação de baratinamento após a Queda do Muro de Berlim, como podemos ver na cena em que Peter Falk pede, de forma um tanto quanto angustiada, instruções ao perdido e confuso taxista alemão. Em contraposição às “Asas do Desejo”, que, na visão do próprio cineasta, consistia essencialmente em uma fábula em que os anjos podiam ser entendidos como uma metáfora da bondade e da ingenuidade que todos temos em nós mesmos, “Tão Longe, Tão Perto!” trata muito mais da realidade contemporânea de uma Berlim recém-unificada. E Wenders mostra em seu filme parte de uma hostilidade e desorientação que os alemães sentiram no momento."Há uma ausência notável de calma e de generosidade. Não diria o amor, porque ele parece ser uma palavra muito forte, mas há uma falta de amizade na Alemanha atual. As pessoas do oriente são hostis às do ocidente, porque se sentem desprivilegiadas. Enquanto o povo da Alemanha Ocidental se sente traído por terem acreditado na falsa promessa de que a reunificação não os custaria muito, mas que, no final das contas, acabaram por sofrer [amargamente] as conseqüências", explica o diretor, que mostra no filme diversas situações vivenciadas pelos alemães que confirmam todo o caos pós-guerra: o Postdamer Platz (lugar em que os sem-teto alemães buscavam algum abrigo), a facilidade de se obter armas, os antigos carros (agora, peças de museu), e assim por diante.

Mas, ainda assim, acredito que a verdadeira missão de Faraway… era a de se fazer uma reflexão sobre o olhar. E me fundamento na própria explicação que o Wenders faz do filme: "a razão pela qual eu realizei este filme novamente com anjos era devido ao modo de como olhamos as coisas”. E o cineasta completa: “Eu só percebi no decurso das gravações de ‘Asas do Desejo’ que o assunto do filme tinha sido os olhares dos anjos perante nós, mortais, a quem eles tanto amam, bem como a minha tradução deste olhar em um filme. Anos mais tarde, percebi que a maneira de como olhamos as coisas deveria ser matéria de um outro filme. Falar sobre as diferentes formas de como vemos o mundo, contando não só a forma de como apreendemos as coisas através do olhar, mas também como damos em retorno pelos próprios olhos.”

Um outro problema mostrado no filme é que "em nossa cultura atual, tudo que acontece está no contexto do consumismo”, desabafa Wim Wenders, que continua: "a função original das imagens é primeiramente mostrar. Hoje, as imagens no cinema e na televisão são dominadas pela obsessão de vender. E vende-se tudo: uma idéia, um produto, uma maneira de vida. O espírito da publicidade é algo que o cinema antigamente não tinha e que agora é dominante na cultura contemporânea do audio-visual.” No documentário brasileiro “A Janela da Alma”, de João Jardim e Walter Carvallho, Wim Wenders (também entrevistado) reitera essa idéia de que vivemos num mundo com tamanha intensidade de informações audiovisuais, que paramos de perceber os detalhes. E ele fundamenta seu pensamento diante a mesmice dos filmes lançados atualmente no mercado. Segundo Wenders, os filmes de hoje já vêm prontos porque as pessoas querem somente os filmes fáceis, sobre os quais não precisam pensar.

Ainda sobre essa questão do olhar, Wenders combate, em especial, um vergonhoso aspecto que têm sido uma constante no Cinema: o voyeurismo pornográfico. Uma vergonha que faz o anjo-homem Cassiel a destruir com um velho rolo de filme, e que, ao meu ver, representaria uma das mais belas mensagens de amor já deixadas ao Cinema. “As imagens sempre ingeriram vários aspectos de nossa vida. As imagens pornográficas são imagens infectadas que invadem as áreas mais íntimas de nossa vida com uma brutalidade e ferocidade imperdoáveis. É só você zapear seu controle remoto e passear pelos programas de TV para acabar se contaminado involuntariamente.”, fala o universal cineasta Wim Wenders, que conseguiu tocar em um drama tão conhecido por nós, brasileiros (especialmente nas tristes tardes de domingo).

Como lição desse olhar, o que ficou para mim é que, apesar de tender a fugir de tudo aquilo que de ruim vejo na mídia e nas pessoas que me rodeiam, devo antes de tudo abrir bem os meus olhos para tentar enxergar a realidade de modo que talvez possa retomar a pureza de meu olhar sobre o mundo. Pois, de acordo com o salve-salve José Saramago, é justamente a indiferença que impede as pessoas (e as nações) ricas de verem o sofrimento dos pobres e dos excluídos. E é justamente o escritor de Ensaio sobre a Cegueira (livro este que recomendo a todos), que diz, em outras palavras, a maior mensagem de “Tão Longe, Tão Perto!”: “Estamos todos cegos, cegos da razão, cegos da sensibilidade, cegos de tudo aquilo que faz de nós seres egoístas e violentos! E o espetáculo que o mundo nos oferece é exatamente este, um mundo de desigualdade, de sofrimento, sem justificação. (…) Estamos todos fadados à Caverna de Platão [hoje, o mundo áudio-visual]. Repetimos a situação das pessoas aprisionadas na Caverna, olhando em frente, vendo sombras e acreditando que elas são reais. (…) Vivemos em um mundo à parte, um mundo audiovisual, onde as imagens se multiplicam e onde nós, futuramente, estaremos perdidos. Perdidos, em primeiro lugar, de nós próprios, e em segundo lugar, perdidos na relação com o mundo.” Mais do que isso, é só acompanharmos o drama do anjo Cassiel enquanto o humano Karl Engel. É crer pra ver (os anjos é quem digam…).

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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