Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 17 de março de 2006

Tirésia

Prendendo o espectador de forma angustiante do começo ao término do filme (os que ficaram até o fim...), Bertrand Bonello tem os ingredientes perfeitos para uma película recheada de conflitos.

O terceiro e mais polêmico filme do cineasta Bertrand Bonello tem como base um mito grego. Tirésias fora um herói de Tebas, que presenciou a cópula de duas serpentes. Por ter sentido prazer ao vê-las, foi condenado a tornar-se mulher. Ao sê-lo, descobre que o sexo feminino possui o prazer sexual nove vezes maior do que o masculino. Quando volta a ser homem, além de revelar o que descobriu, vê a deusa Atena nua, o que lhe acarreta o castigo de ser cego, porém com poderes divinatórios.

Paris, Bois de Boulogne, um bosque em que, infelizmente, são famosas as prostitutas brasileiras. Esta “zona” é o local de trabalho de Tirésia, um transexual bonito, com um forte sotaque do sul do nosso país. Nas entranhas do bosque, era onde estava Tirésia, sereno, entoando “Teresinha de Jesus”, quando lhe encontrou Terranova. Ele, um homem aparentemente calmo, que possui em casa um jardim sem rosas, em que habita um porquinho-da-índia bastante amistoso. Terranova é, também, um admirador da estética, e vê em Tirésia, a rosa que lhe falta. Ele o leva para casa e o que seria um programa comum, porém, logo afirma que, com ele, não quer sexo. Que vai mantê-lo em sua casa. É realmente o que acontece, mas, com o passar das semanas, por não estar tomando os hormônios devidamente, Tirésia passa a recuperar as feições masculinas, o que é um desastre para ambos. Frustrado com o resultado da experiência, Terranova, em um ato que deixa a platéia violentamente surpresa, fura os olhos de Tirésia e o abandona à margem de um córrego. Anna, uma adolescente religiosa, passa a cuidar de Tirésia, que assume totalmente as feições masculinas e, como no mito, devido à cegueira, passa a ter dons divinatórios, sendo consultado e querido pela população da região.

“Tirésia” choca em diversos aspectos, como por tocar no tema da transexualidade; da imensa legião de homens e mulheres, que, ao tentar uma vida melhor em países de primeiro mundo, acabam por trilhar o caminho da prostituição; na questão da dualidade da vida; no discurso clerical sobre a sexualidade; dentre outros tópicos. Podemos também estabelecer um paradoxo entre a primeira e a segunda parte do filme. No início, Tirésia preocupa-se em manter um tipo físico, através de muita química, ao ser seqüestrado por Terranova. Neste momento, o filme é sombrio e extremamente angustiante. Mas para que ele possa comunicar-se com as pessoas e consigo mesmo, é necessário deixar de aparentar e passar a ser. Apesar de um fim trágico, só assim, Tirésia viveu em plenitude. O cineasta parece questionar a imposição natural em nossas escolhas. Há uma falta de diálogo convencional entre Tirésia e Anna. Tirésia, cego, e Anna, muda. Porém, eles agem e seguem vivendo, pois esta é a sina de ambos. O cineasta expressa toda essa penumbra com base na sua formação em música clássica, extremamente explorada na película. Diz ter extraído a idéia de “Tirésia” do sonho que um amigo teve, que coincidiu com o fatídico mito grego.

Ambos os atores escolhidos por Bonello para interpretar Tirésia são brasileiros: Clara Choveaux e Thiago Telles. Ela viveu por cinco anos em Paris, já tendo atuado em “O Pornógrafo”, dirigido por Bonello, e já exibido no Cinema de Arte. “Tirésia” rendeu muitas indicações e prêmios internacionais à Clara, que merecera, pois passou por maus-bocados tendo que usar uma barba postiça e um avantajado pênis de plástico.

O debate desta manhã foi rápido, pois houve um contratempo nas bilheterias, atrasando, em meia-hora, o filme. A sala de exibição em que estávamos, seria usada para outro filme, então tivemos de mudar para outra sala (posteriormente, receberíamos o mesmo alerta, o que nos forçou a terminar mais cedo, o debate).

O professor de Filosofia, Rosendo Freitas Amorim comentou a necessidade de Tirésia de ser mulher. No transexual masculino, o pênis é o maior incômodo, é como se aquilo fosse uma maldição, um fardo extremamente não-atraente. Nos disse também, que, como é visto no também francês “Minha Vida em Cor-de-Rosa”, a criança transexual já emerge esse desejo na infância. Como já foi comentado, também disse que Tirésia foi cego pelo valor que dava ao físico, que somente assim, voltaria para dentro de si, quase que forçada.

Para encerrar, a psicanalista Beth Mota trouxe para nós um ensaio sobre o filme, elaborado por ela, intitulado de “Tirésia, Teresa, Teresinha de Jesus”. O ensaio questionava, basicamente, o brotar de um dom no ser humano. Como alguém deixa de ver e passa a prever. Fala também, da penetração e da castração simbólica, ao Terranova furar os olhos de Tirésia. Outro fato interessante comentado por Beth, foi a primeira definição dada ao transexual, que é a convicção inabalável de querer pertencer ao sexo oposto, uma idealização enlouquecida da feminilidade (no caso de Tirésia).

Para completar o debate, compareceram dois membros da Associação dos Travestis de Fortaleza, que comentaram o dia-a-dia e as dificuldades enfrentadas por cada um deles e das moças com quem convivem, ao trabalhar em um local em que surge gente mal-educada que os maltrata verbal e fisicamente.

Na próxima semana, o Cinema de Arte voltará com o filme “O Agente da Estação”, que aborda o tema da exclusão social, quando um anão resolve se refugiar do meio em que vivia, mudando de cidade e passando a conhecer gente interessante, surpreendendo a si mesmo. Ao término da sessão de sábado, haverá um debate sob o tema “O diferente e a exclusão social”, com Celeste Cordeiro, titular da Secretaria de Mobilização e Inclusão Social, e Flávio Arruda, presidente do Movimento Vida. A mediação de Angélica Maria Barbosa, assistente social do NUTEP.

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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