Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Border (2018): fantástica fábula nórdica

Do mesmo autor de “Deixa Ela Entrar”, a obra ousa mexer com sentimentos de repulsa para contar uma história, ao mesmo tempo, mítica, universal e contemporânea.

Border” é um drama sueco dirigido por Ali Abassi (“Shelley”) com fortes traços de fantasia devido à natureza de sua personagem protagonista, Tina (Eva Melander, “O Hipnotista”). Ela trabalha na alfândega de um porto de entrada de passageiros vindos de países próximos à Suécia. Sua função é identificar pessoas que podem estar portando algo ilegal na travessia, só que diferente de um agente normal, ela não precisa de detectores de metal ou equipamentos de raios x. Seu “super-poder” é literalmente seu faro. Essa habilidade incomum de farejar culpa, raiva e medo nos passageiros é somente um dos diversos elementos que causam estranheza no espectador ao longo da história.

Tina mora numa casa no meio da natureza, e sua relação de proximidade com a fauna é especial. Seu passatempo é sair descalça pela floresta, mantendo contato com raposas e alces que não sentem medo de sua presença, diferente dos cães de seu companheiro por conveniência Roland (Jörgen Thorsson, “Ego”), que ficam nervosos perto da agente alfandegária. Há um outro aspecto estranho em Tina: seu rosto possui traços raros, ossos largos, face inchada e dentes grandes e amarelos. Tal “feiura” é possivelmente causa para todo um passado de rejeição que explicaria para o público sua introspecção quase deprimida. Seu único parente é seu pai, que está numa clínica para idosos beirando a perda de memória e demência.

Tentar entrar no mundo de Tina é o aspecto intrigante ao início da obra, mas logo acontecem dois eventos que quebram a rotina silenciosa da estranha personagem. Na alfândega, duas pessoas são paradas. Primeiro, um homem é flagrado por Tina com arquivos digitais contendo pornografia infantil e vai direto para a delegacia. A agente é então convidada a auxiliar uma investigação para desbaratar uma possível organização por trás dos arquivos. O segundo evento é o mais desestabilizante para a protagonista. O estranho Vore (Eero Milonoff, “O Dia Mais Feliz da Vida de Olli Mäki”), uma pessoa com características físicas muito semelhantes à Tina, atravessa seu caminho na fronteira. A princípio ela fareja algo errado nele, mas não consegue identificar o quê. Quando voltam a se encontrar, a curiosidade de Tina faz com que ela puxe conversa e se aproxime de Vore.

Como todo bom filme que propõe uma estrutura de “estudo de personagens”, nada é muito exposto sobre a bizarra natureza coincidente entre Tina e Vore. Aos poucos, como páginas de um livro, o longa revela traços dos dois personagens que atingem diretamente o fígado do público. O diretor propõe para o espectador um verdadeiro embate entre repulsa e curiosidade, já que as características misteriosas dos protagonistas envolvem um certo horror corporal capaz de causar reações negativas em alguns. Se por um lado as formas e os hábitos do estranho par podem provocar distanciamento, por um outro a relação entre os dois é de uma sensibilidade envolvente. Para Tina e seus sentimentos vulneráveis de inadequação, Vore se torna o motivador, tanto de aceitação pessoal e libertação, quanto de questionamentos morais sobre sua natureza. É nesse conflito que se encontra a simbologia do filme e uma possível interpretação extra sobre “fronteira” (do título em inglês “border”).

Quando se realiza uma obra de fantasia, ficção científica ou até terror, é importante que a história funcione tanto no seu universo inventado quanto na projeção da trama no mundo real. É um dos fatores que acrescentam valor à produção e exercem uma função especial, a famosa “moral da história”, ao lidar com temas sérios e relevantes num nível subconsciente, como nos contos de fadas. O realismo social por trás do sobrenatural em “Border” é dessa forma uma camada válida para reflexões. Porém, a atmosfera mítica criada e a repugnância potencializada pela impressionante maquiagem e interpretações dos atores podem afastar um público desinteressado em criar empatia ou compreender aspectos da cultura nórdica.

Curiosamente, o tema da aceitação própria contra expectativas sociais e de gênero aparece em outras recentes obras de horror fantástico escandinavo, como o norueguês “Thelma” e o sueco “Deixa Ela Entrar”. A semelhança de elementos entre este último e “Border” também não é coincidência, já que ambas histórias foram escritas e adaptadas ao cinema pelo mesmo autor, John Ajvide Lindqvist. A dor da busca por validação existencial e a reflexão sobre o que significa ser ou não ser humano são questões que pairam no centro do longa de Ali Abassi, que desafia a aversão do espectador pela caracterização dos personagens, mas recompensa como uma ótima e esperançosa fábula.

William Sousa
@williamsousa

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