Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 22 de março de 2018

Piripkura (2017): espíritos da floresta

Documentário brasileiro premiado internacionalmente conta a expedição de busca por dois índios que, embrenhados na mata, sobrevivem às agressivas investidas dos empreendimentos extrativistas.

Dois indígenas nômades resistem no coração do Mato Grosso, ameaçados por grileiros de terras e madeireiras que visam terraplanar a região. Eles são Piripkura, ou o que restou do “povo borboleta”, dizimado por latifundiários nos anos 80, que em 1998 decidiram embrenhar-se na floresta munidos de facão, um machado cego e uma tocha que lhes provém fogo (seu precioso Tatá). De tempos em tempos, a uma expedição da FUNAI é dada a missão de localizá-los mata adentro como condição necessária para manter a interdição da área. Cada expedição é cercada não só pela dificuldade da busca, como também pela incerteza de que eles sejam encontrados – pelo menos com vida.

Esse documentário nacional, de Mariana Oliva, Renata Terra e Bruno Jorge, premiado como Melhor Documentário no último Festival do Rio, vencedor de outros tantos prêmios internacionais e hoje, felizmente, em cartaz no circuito comercial, acompanha uma das expedições de busca pelos índios, liderada por Jair Candor, servidor da FUNAI que acompanha a tribo desde 1989. Embora sua proposta seja bastante imersiva, quase etnográfica, acompanhando passo a passo do processo de localização de Pakyi e Tamamdua, e depois o contato com eles, a saga acaba revelando uma intricada rede de relações institucionais que inclui, além dos empreendimentos extrativistas motivados pela alucinação do progresso e do desenvolvimento a qualquer preço, também a relação dos órgãos públicos de proteção ambiental e indígena, mostrando a importância e, em alguns momentos, a precariedade para o desempenho de suas funções. Assim, Jair, que esse ano será premiado pela Anistia Internacional por sua luta pelos direitos humanos, torna-se o guia dessa jornada, com um jeito absolutamente confortável frente às câmeras, sendo visto, no ínterim dos preparativos para a expedição, brincando com moleques na beira de um rio, aproveitando do cenário exuberante (e sempre ameaçado) da região.

Assim, Piripkura é muito mais que um filme “sobre índio” – o que geralmente afasta um público urbano desinteressado por essas questões. Difícil é dizer que qualquer filme de índio seja apenas sobre isso, como os recentes exemplos de “Martírio” (Vincent Carelli), “Antes o Tempo Não Acabava” (Fábio Baldo e Sergio Andrade) e “Ex-Pagé” (Luís Bodansky), produções nacionais que, cada um à sua maneira, reatualizam as questões indígenas no Brasil, com suas ramificações políticas e sociais mais amplas. “Piripkura” é, assim, um filme sobre o Brasil. Sobre como o Brasil decidiu lidar com seus nativos, e também sobre alguns não-índios (porque “No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é”, como diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro) têm papel fundamental na escolha do lado certo. A luta coletiva pela proteção não apenas do direitos dos outros povos, mesmo que “isolados do resto do mundo”, se assim o desejarem, nos permite entender como a proteção de uma tribo pode também representar a garantia da resistência de todo um ecossistema em perigo.

A narrativa constrói o encontro com os Piripkura de modo furtivo, inesperado, num momento em que a expedição já dava sinais de cansaço. Ele só é possível graças às dicas de Rita, a terceira Piripkura sobrevivente, irmã de Pakyi que vive entre os brancos e fala um pouco de português (seus irmãos falam a língua tupi Kawahiva). É de Rita que vem a maior parte das informações sobre o extermínio do povo Piripkura, bem como a confiança de que seus parentes permanecem vivos. A expedição de Jair, por sua vez, atém-se à confiança na resiliência dos dois índios (“eles são muito espertos”, ele diz constantemente), passando dias na floresta buscando sinais de sua presença, como a montagem de tapiris, espécie de cabana, fogueiras e armadilhas de caça. Mas os dois índios são encontrados muito próximos ao posto da FUNAI, que eles mesmos buscavam à procura de fogo. Descobrimos então, que de tempos em tempos eles retornam ao posto atrás do precioso tatá para sua tocha de folhas de árvore que de Era em Era se apaga: a última vez que seu fogo apagara havia sido nos anos 90, informa-nos Jair.

Como nem sempre as estações da FUNAI, por falta de recursos, estão abertas ou têm pessoal para recebê-los, quando isso acontece os índios às vezes buscam auxílio numa fazenda próxima, expondo-se a um grande risco para suas vidas. Em cada retorno, eles se apresentam com um nome diferente, tendo sido, antes de Pakyi e Tamamdua, Mande-í e Tucan e outros tantos nomes – demostrando assim que, embora ainda sejam lidos como “primitivos”, esses povos mostram profunda capacidade de transformação, além de uma resiliência incomparável. Outros aspectos da diferença se manifestam na interação frágil entre os índios e os funcionários da FUNAI, nos poucos dias que eles passam no posto, enquanto Jair tenta negociar a vinda de uma equipe médica para examinar suas condições de saúde.

Essa dinâmica entre brancos e índios, sob a tutela dos aparelhos de Estado, mostra a relevância dos órgãos de proteção ambiental e indígena num país como o nosso, que tem mais de 200 tribos indígenas conhecidas, além de outras tantas não contatadas. Frente à expansão comercial do agronegócio e dos extrativistas, povos como os Piripkura desempenham um papel de verdadeiros espíritos da floresta, entidades presentes em suas próprias mitologias, evitando que uma região como Mato Grosso complete sua desdita de tornar-se Mato Fino (mais uma vez Viveiros de Castro, pontual), terra arrasada em que, invertendo os escritos de Caminha, “em se plantando, nada mais se dê”. Já filmes como esse, tem a potência de trazer ao debate público dramas que eclodem fora do eixo urbano e do Sudeste, revelando a vastidão do território brasileiro, a multiplicidade de seus problemas e suas inesperadas lutas em defesa do que é certo.

Vinícius Volcof
@volcof

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