Cinema com Rapadura

Críticas   quarta-feira, 14 de março de 2018

Em Pedaços (2017): os cacos da Europa

Drama familiar denso explora, em sua subcamada fortemente política, o impasse europeu frente à diversificação de suas sociedades.

“Em Pedaços”, longa de Fatih Akin (“Soul Kitchen”), vencedor do Globo de Ouro (mas esnobado pelo Oscar) de melhor filme estrangeiro do ano de 2017, escolhe o caminho difícil e aborda um tema urgente e polêmico de forma bastante dura e direta. Não é surpresa para um filme alemão, e a história de uma mãe de família que perde seu marido e filho num ataque terrorista xenofóbico, não tenta dourar a pílula diante de um acontecimento cada vez mais recorrente no contexto de crise de identidade europeia.

Na primeira sequência do longa, vemos Katja (Diane Kruger, injustamente esquecida nas premiações) diante do inspetor de polícia que lhe reporta a tragédia familiar, informando-a que qualquer reconhecimento dos corpos precisará ser feito a partir dos pedaços restantes, pois as vítimas foram destroçadas pela explosão de uma bomba de pregos. O detalhe macabro dá o tom de uma narrativa que não possui alívios cômicos, resoluções fáceis ou momentos em que o próprio espectador não se sinta frágil, vulnerável e em perigo, como a protagonista.

Kruger mergulha de cabeça nessa mulher que precisa de um abraço, oferecendo-a camadas de interpretação que raramente vemos em seus filmes mais comerciais. Embora ela seja reconhecidamente uma boa atriz, não é em “A Lenda do Tesouro Perdido” (2004) ou “Bastardos Inglórios” (2009) que veremos todo seu potencial dramático. Já em um projeto menor, como essa coprodução franco-alemã, a atriz pode testar alguns limites e assim explora dimensões nebulosas dessa mulher que está em pedaços. Tampouco, como já tido, entrega-se aqui qualquer saída fácil que mostre, por exemplo, sua personagem vivendo um tour de force épico de vingança e superação, com um resultado satisfatório ao final que dispense até terapia. Não estamos vendo um “John Wick” ou um filme estrelado Liam Neeson, mas um drama realista de mínimos ou quase nenhum artificialismo visual (os cenários são todos muito simples, cotidianos), de uma mulher que tenta algum fechamento à violência que ela e os seus sofreram, errando e encontrando barreiras pelo caminho acidentado da recuperação. É nisso que sustenta-se o elemento de verossimilhança mais forte dessa história, reforçando seu estilo realista.

Diante da destruição de sua vida, Katja entrega-se brevemente às drogas, torna-se arredia com a família e até o clima parece chorar seu luto com chuvas persistentes. Tudo é preto e triste. Os personagens estão acabados, feios, cansados.

É apenas a progressão da investigação que mobiliza a protagonista a continuar, e assim temos, no segundo capítulo do longa, “Justiça”, divido num total de três, a segunda fase da jornada dessa mulher, diante de uma corte judicial e dos autores do crime. Nesse momento, o filme perde um pouco de seu tom melodramático, focado no processo depressivo de sua protagonista, e começa a ganhar ares de thriller, à medida que instiga o espectador a partilhar do seu desejo de vingança. Torna-se claro agora os motivos que levaram ao crime e o/os algozes são explorados com mais afinco.

A parte final do longo conclui de forma transversal, ao falar de injustiça e vingança, a crítica ao racismo da Europa frente à crescente diversidade cultural promovida pelos novos fluxos migratórios. Com isso, expõe lado a lado os privilégios de um cidadão “nativo”, mesmo que criminoso, frente aos imigrantes e “outsiders”, ainda que as vítimas não sejam bem aceitas nessas sociedades. É assim que, em muitos momentos, Nuri e até mesmo Katja são tratados pelas autoridades, mais como suspeitos que como vítimas, aumentando a descrença da protagonista e seu ímpeto de agir por si mesma. Mostra-se, assim, que mesmo desenvolvida e coesa, a Europa (refiro-me ao núcleo duro de seus países mais economicamente desenvolvidos) não têm conseguido ser plural – e o resultado disso pode ser a anarquia entre os diversos grupos e a ruptura social.

Diante disso, sobram perguntas: faz-se justiça verdadeira com as próprias mãos? Os indivíduos terão de resolver essa situação sozinhos? O filme, provocativamente, mostra dois exemplos análogos, conquanto diametralmente opostos e moralmente díspares, que sem as estruturas sociais mais amplas (seja o Estado, a Justiça ou a política institucional), sem as alternativas e empreitadas por mundos melhores que partam do coletivo, os indivíduos tendem a agir estúpida e displicentemente. É isso que mobiliza o crime de ódio dos assassinos neo-nazistas da família de Katja. Simetricamente, é isso que mobiliza a vingança sacrificial da própria protagonista.

“Em Pedaços”, trata-se, portanto, de uma Europa fragmentada, na esteira de alguns outros filmes que retratam esse contexto difícil de reinvenção do Velho Continente frente aos fluxos muçulmanos, latinos, africanos, orientais, ao desmembramento da EU e as iniciativas localizadas por independência, autonomia e autodeterminação. Embora extremamente soturno e pesado, o filme, através de uma crítica política evidente, que termina inclusive com dados que quantificam a atual onda de crimes xenofóbicos na Europa, é uma história crítica que aventa questões de reflexão sobre o futuro daquela sociedade – e seu impacto sobre o mundo.

Vinícius Volcof
@volcof

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