Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017): sobre atos e consequências

Um filme provocativo e que exige paciência, não para ficar interessante, mas para ser compreendido. Um trabalho bem executado de direção, que causa um (não) agradável incômodo.

O cinema do diretor grego Yorgos Lanthimos (“O Lagosta”) pode não ser uma experiência agradável para qualquer público. Seus filmes não possuem uma narrativa fácil de acompanhar e a maneira como ele trabalha os conflitos podem parecer confusas ou estranhas. É necessário uma participação ativa de quem assiste para se envolver e compreender a obra, e com “O Sacrifício do Cervo Sagrado” não é diferente.

A trama acompanha o cardiologista Steven (Colin Farrell de “O Estranho que Nós Amamos”), ele é casado com a, também médica, Anna (Nicole Kidman de “O Estranho que Nós Amamos”), com quem tem dois filhos, Kim (Raffey Cassidy de “Tomorrowland: Um Lugar Onde Nada é Impossível”) e Bob (Sunny Suljic de “The Unspoken”). Steven também mantém contato com um garoto, Martin (Barry Keoghan de “Dunkirk”), cujo verdadeiro laço que os conecta é nebuloso num primeiro momento. Com o tempo, Martin busca manter-se cada vez mais próximo de Steven, que começa a ver a si mesmo – e a sua família – ameaçados por algo relacionado ao jovem.

Em tempos de filmes que menosprezam a capacidade do público de interpretar o que está sendo mostrado, é prazeroso assistir uma obra como “O Sacrifício do Cervo Sagrado”. A direção de Yorgos Lanthimos é feita assumindo um risco calculado, para que ao final da exibição o público tenha condições de compreender a trama principal e ao mesmo tempo criar considerações sobre tudo o que a circunda. Para isso, o diretor pondera a montagem de uma forma que o resultado seja do seu agrado. Martin, por exemplo, é desenvolvido a cada nova cena em que aparece, mas seu papel na trama só é definido na metade do filme. Até então, sua figura, que oscila entre a inocência e o macabro, é nebulosa – mas nunca confusa, pois é tudo apresentado de forma coerente, embora não óbvia.

Também não é ao acaso a maneira como Nicole Kidman e Colin Farrell atuam. A frieza emocional (algo muito próximo de “De Olhos Bem Fechados”) frente aos conflitos que vivem, apesar de causar estranheza num primeiro momento, evidenciam a situação vivida por eles. A compreensão é estimulada a ser mais racional do que emocional, o que justifica a resolução do conflito. Por mais difícil que possa aparentar a decisão, ela é justificada exatamente na racionalidade (embora haja uma ligeira quebra nesse sentido por parte de Farrel, que se deixa afetar pelo contexto).

Mas a semelhança da obra final de Kubrick não está apenas na ausência de emoção demonstrada pelas personagens (e quebrada aqui por Farrel e no filme de Kubrick por Tom Cruise, a partir de um acontecimento específico). O ímpeto de vingança que leva às personagens masculinas a tomar decisões que as desestabilizam e a impotência ao se perceber incapaz de lidar com o problema criado – pelos próprios protagonistas – estão presentes em ambos os filmes.

Mas o que há de mais belo neste filme é a construção de um vilão consciente de seus atos e que se mostra o tempo todo impassível. E como o diretor não recorre ao clichê, tudo é explicado de forma rápida (e repetido para que fique bem claro). Em determinada cena, ele demonstra com uma cruel naturalidade a forma como o universo gira para equilibrar as coisas. E na forma como ele faz a demonstração é tão terrivelmente fria, que passa a ser impossível não se sentir incomodado a cada vez que a câmera retorna a ele.

Certamente “O Sacrifício do Cervo Sagrado” não é um filme simples e não deve agradar uma parte considerável do público. Ele exige um envolvimento ativo para que, ao final, tudo possa ser conectado e compreendido. A construção narrativa pode causar uma estranheza num primeiro momento, mas está ali de forma racional, não para confundir, apenas para provocar. É um desses filmes que quando acaba você pode não dizer se gostou ou não, mas é impossível ficar indiferente a ele.

Robinson Samulak Alves
@rsamulakalves

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