Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Mudbound – Lágrimas Sobre o Mississippi (2017): sensação de déjà vu

O drama é bastante pesado e realista, mas distante de constituir novidade na sétima arte. Existem vários filmes melhores sobre os mesmos temas.

Entre “…não faz sentido lutar. Eles sempre vencerão” e “o amor é a resposta, o ódio é um câncer” está “Mudbound – Lágrimas Sobre o Mississipi”. O filme está mais próximo da primeira fala – dita por uma das personagens – do que da segunda, um trecho (em tradução livre) da música-tema do longa, “Mighty River”, um verdadeiro hino de fraternidade.

A película retrata o convívio entre as famílias McAllan e Jackson nos anos 1940, em uma região campestre no delta do Rio Mississippi. Enquanto Laura (Carey Mulligan, “As Sufragistas”) sofre para se adaptar com a nova vida na fazenda, seu marido Henry McAllan (Jason Clarke, “Planeta dos Macacos: o Confronto”) realiza o sonho de ser fazendeiro. Já o pai de Henry, Poppy (Jonathan Banks, da série “Better Call Saul”), se preocupa em manter os privilégios dos brancos na região. Por outro lado, o casal Florence (Mary J. Blige, “Rock of Ages – O Filme”) e Hap Jackson (Rob Morgan, da série “Luke Cage”) busca manter uma vida pacata com seus filhos e pacífica com as pessoas brancas. Porém, a vida da família Jackson não tem esse alívio.

Na verdade, alívio é o que praticamente não existe no longa, o que é apontado já em seu nome, que, em tradução livre, significa “preso na lama”: estão todos enjaulados em um contexto de dor e sofrimento, no qual manifestações calorosas são episódicas (quando não vistas negativamente), imperando o ódio. Essa ideia transparece através da fotografia, que, além de escurecida em tons pastéis, sugerindo a imensa tristeza, usa sempre uma paleta de cores de tonalidades castanhas, fazendo alusão à lama e à sujeira. É um ambiente árido, com uma diversidade mínima de cores, sem brilho e onde a alegria passa longe.

Exceto pela montagem simultânea intercalando Hap, em uma escada, e seu filho Ronsel (Jason Mitchel, “Detroit em Rebelião”), em um tanque de guerra – com raccords de difícil execução –, a direção de Dee Rees (“Bessie”) é modesta na técnica. Acerta, em especial, na exposição visual do Zeitgeist – o que é favorecido pelo roteiro (também adaptado por Rees, juntamente com Virgil Williams, a partir do romance homônimo de Hillary Jordan). É uma época: em que negros não podem entrar em quaisquer estabelecimentos, tampouco utilizar quaisquer assentos em ônibus (que deixam reservados os do fundo para “pessoas de cor”, com uma placa indicativa); em que o casamento é, em teoria, o caminho para as mulheres terem a vida com que sonham, todavia, na prática, é o instituto que concretiza a posição hierárquica inferior da mulher na família tradicional (baseando-se na obediência); e em que o capital dá contornos desumanos para quem não o detém.

Quando Ronsel tenta enfrentar o racismo, já acostumado com a mentalidade avançada que encontrou no Velho Continente, a derrota no conflito se torna certa. Laura é outra reprimida naquele que rotula como um “lugar esquecido por Deus”. Carey Mulligan capta a essência da personagem, que precisa ser insossa, mas não inerte; invisível na maioria do tempo e para a maioria das pessoas, mas não sempre, nem para todos. No que se refere ao capital, Henry compreende que a família Jackson tem um preço, seja por bem (como ao contratar Florence), seja por mal (como ao chantagear Hap). Rob Morgan e Mary J. Blige (que canta a mencionada música-tema) são facilmente os melhores do elenco: ela representando a perenidade da dor; ele com ápice na cena da calça.

Nós e eles, amor e ódio: como adiantado na primeira linha do presente texto, o filme é marcado por dicotomias. Isso não significa, porém, que é maniqueísta: é verdade que algumas personagens são a encarnação do bem (Florence) ou do mal (Poppy), mas existem figuras cinzentas, como é o caso de Jamie (Garrett Hedlund, “Peter Pan”), cuja personalidade é bastante dúbia. É interessante também a maneira pela qual o filme contrapõe Jamie e Ronsel: de tão diferentes, descobrem o quão semelhantes eles são.

O roteiro do longa excepcionalmente acerta no uso intensivo de narração voice over: normalmente, o recurso representa preguiça do roteirista, aqui, porém, ao colocar várias personagens na condição de narrador, a narrativa ganha diversos pontos de vista, o que enriquece a trama. Outro recurso arriscado é começar o filme pelo fim, o que, diversamente, lhe dá uma margem de previsibilidade (basta prestar atenção). De todo modo, os dois grandes problemas do filme residem em seu plot: não é original e, ao falar sobre tantos temas, deixa de ser incisivo (salvo pela brutal e chocante sequência ao final).

Trata-se de um drama bastante pesado e realista, mas distante de constituir novidade na sétima arte. É por isso que, na maior parte da sua duração, não consegue extrair fortes emoções, deixando a sensação de déjà vu. Existem vários filmes melhores sobre os mesmos temas.

Diogo Rodrigues Manassés
@diogo_rm

Compartilhe