Cinema com Rapadura

Críticas   quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Terra Selvagem (2017): sobrevivência ao inóspito

Um dos grandes filmes da década, o longa aborda as diversas dificuldades dos povos nativos americanos e das mulheres, além de tratar com muita sensibilidade os sentimentos humanos, tudo dentro de um mistério simples envolvendo um assassinato.

Quando o roteiro de um filme expõe uma narrativa grandiosa, é fácil ser arrebatado por ele. Mas nem todos têm a capacidade de contar uma história simples de um jeito tão estarrecedor e apaixonante como “Terra Selvagem” consegue. Usando um cenário gelado e inóspito atrelado aos incontáveis problemas que os povos nativos norte-americanos – em especial as mulheres – sofrem até hoje, o longa aborda, de forma brilhante, os sentimentos e instintos mais humanos dentro de cada um e a dificuldade de lidar com eles.

A trama se inicia quando o caçador Cory Lambert (Jeremy Renner, “A Chegada”) se desloca para perseguir um predador que está dizimando o gado de um habitante do local. No caminho, ele acaba se deparando com o corpo de uma jovem com sinais de estupro e violência. Impelido por um trauma de seu passado, Cory acaba ajudando a agente do FBI Jane Banner (Elizabeth Olsen, “Capitão América: Guerra Civil”) na busca por respostas.

O longa já começa com uma cena impactante ao mostrar a jovem Natalie (Kelsey Asbille, da série “Teen Wolf”) correndo desesperadamente, descalça sobre o gelo, lutando para sobreviver. É essa batalha que muitas mulheres nativas americanas precisam enfrentar para resistir à selvageria de uma terra esquecida, dentro de um povo igualmente preterido. Taylor Sheridan, em sua estreia como diretor, procura destacar a resiliência feminina durante todo o filme, seja explicitamente, ao abordar a falta até de registros para os casos de desaparecimento de ameríndias, ou mais implicitamente através da agente Banner, que embora pareça despreparada para a ocorrência – o que parece proposital, já que ela é a visão do espectador naquele mundo -, se entrega de corpo e alma em busca de uma solução, incomodando o tipicamente frágil ego masculino do povo local.

Apesar da premissa investigativa simples, Sheridan não aposta apenas na crítica social para enriquecer o seu texto. Abusando do poder do storytelling, o diretor – que também assina o roteiro – apresenta uma mensagem crua e seca sobre emoções humanas, desde a perda e o luto (este presente fortemente percebido na trilha sonora), que acabam atingindo grande parte do público, como a vingança e a justiça. Assim como acontece nas demais obras escritas por Sheridan (“A Qualquer Custo”“Sicario”), é bem difícil sair do filme sem algum dilema moral, formado por situações criadas para nos gerar empatia, mas que, ao mesmo tempo, podem ser consideradas erradas. Assim como é igualmente provável sair com uma visão completamente transformada a respeito de sentimentos como a aflição ou a dor.

Todos os personagens são muito bem escritos, criando uma sintonia capaz de envolver o espectador de forma única. Embora parte da trama precise se resolver através de diálogos, por várias vezes vemos apenas trocas de olhares e longos silêncios entre eles, artifício que reforça a frieza do lugar e que só funcionaria se o elenco entregasse ótimas atuações, o que de fato acontece. Porém, dentre todos, não há como não destacar o papel de Jeremy Renner como Cory. Bastante introspectivo, mas extremamente eficaz no que faz, o caçador é a personificação do ambiente em que vive: frígido, silencioso e carregado de muito sofrimento dentro de si. A fotografia deixa esta simbologia ainda mais forte quando o personagem está vestido e equipado com seu rifle, tornando-os, ele e a paisagem nevada, uma coisa só. Muitas vezes a sua expertise é utilizada como elemento de roteiro para fazer a investigação andar, mas a eficiência e o conhecimento que Cory demonstra ter na área faz com que tudo seja crível.

A grande virada narrativa no início do terceiro ato talvez seja o momento mais problemático. Não cabe aqui revelar o que acontece, mas digamos que não houve uma construção suficiente no decorrer da trama que justificasse a inserção dessa cena de uma forma tão abrupta. Embora a motivação do diretor ao introduzir esta sequência seja inteirar o público sobre determinado evento e justificar o que aconteceria até o fim da história, ela poderia ter sido um pouco mais diluída ao longo do filme. A obra até então apostava em comover apelando apenas para as emoções causadas pelos fatos, fazendo com que o martírio desta cena saia um pouco do tom do longa.

Baseada em uma ideia bastante elementar, “Terra Selvagem” tinha tudo para ser mais um corriqueiro filme de investigação. Mas ao construir uma trama riquíssima em reflexões dolorosas e respostas difíceis para complicações bastante atuais, Taylor Sheridan nos presenteia com uma obra assombrosamente bela.

P.S.: embora já tenha comandado o filme de terror “Vile” (2011), o próprio Taylor Sheridan considera que “Terra Selvagem” é sua estreia como diretor.

Martinho Neto
@omeninomartinho

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