Cinema com Rapadura

Críticas   sexta-feira, 09 de fevereiro de 2018

Visages, Villages (2017): filmar pelo prazer

A obra final de uma das cineastas mais importantes de todos os tempos, explora com doçura a beleza das pequenas coisas, refletindo sobre o tempo e sobre a vida.

Às vésperas de completar 90 anos (em 30 de Maio) e tornar-se uma das decanas do Cinema, a cineasta belga Agnès Varda (“Cléo de 5 às 7″) encerra sua carreira, iniciada como uma das pioneiras da Nouvelle Vague, com um documentário experimental realizado em parceria do artista visual JR. Em “Visages, Villages”, estão presentes todos os elementos conhecidos do cinema documental de Agnès e que tornaram-se fundamentais na narrativa do cinema independente, como as rupturas de trama, a presença em cena da diretora, a narrativa em off e as idas e vindas dos mesmos planos. Fazendo rima com a fonética das palavras em francês, o título alude a algo como rostos e vilas, e assim indica seu tema principal: trata-se de um singelo passeio da cineasta a bordo do caminhão-máquina-fotográfica do artista Jean Réné, explorando pequenos vilarejos no interior da França, em busca das histórias neles escondidas.

Jean Réné é conhecido por instalar grandes murais em contextos urbanos ao redor do mundo, como fizera em 2009 na Casa Amarela, Morro da Providência, no Rio de Janeiro. Com Agnès ele executa o projeto Inside Out, em que visita pequenos vilarejos franceses em busca de histórias e, sobretudo, rostos, imprimindo fotografias em tamanho gigante a partir de uma van que também é seu meio de transporte. Enigmático, sempre com óculos escuros, seu visual é associado por Varda ao seu amigo-do-passado Jean-Luc Goddard. Mas o tabu do companheiro ainda faz rima com uma condição da própria cineasta, que sofre de uma doença degenerativa nos olhos, não apenas revelada na tela em seus angustiantes procedimentos médicos, como também representada visualmente por intervenções ou obras construídas com JR, em que se brinca com o foco e a percepção.

Ao trazê-la para participar dessa empreitada, JR realiza um feito único, digno dos prêmios e indicações que o longa tem recebido mundo afora – incluindo dois prêmios em Cannes –, além da indicação à estatueta dourada da Academia americana. A motivação para o aceite parece ter sido a admiração mútua, demonstrado já nas primeiras cenas, quando ambos aparecem caminhando em uma estrada em direções opostas. Outros momentos encenados se repetirão ao longo da narrativa, incluindo alguns protagonizados pela própria Varda, adorável ao pousar pacientemente (até certa altura) para as fotos do colega artista, muitas vezes em poses hilariantes. O resultado do encontro é inacreditavelmente bem sucedido, numa interação que revela-se ora numa dimensão maternal, ora filial, ou de amizade, ou de fã, ou de disputa criativa etc. São muitas as formas como os dois interagem, todas reforçando a complexa humanidade dos espíritos criativos.

Percorrendo as agradáveis estradinhas francesas e parando como que aleatoriamente em vilarejos, fábricas e bairros abandonados, nota-se que o filme também é sustentado por pesquisas que foram capazes de cavar histórias interessantes, que motivassem o trabalho dos autores. Assim, em cada uma das paradas descobre-se preciosidades escondidas em meio ao bruto e velho cimento e tijolos, como o da última moradora de um bairro de mineiro no norte do país, ou a fortaleza implodida e disposta como uma peça de arte contemporânea numa praia, outrora cenário de batalhas da Guerra.

A história vai sendo preenchida, assim, por planos inacreditáveis, que combinam o bem conhecido estilo narrativo de Varda à estética do trabalho de colagem de JR, a grudar seus lambes indiscriminadamente sobre galpões, prédios e até contêineres postais. Com isso, a aventura também ganha a forma de intervenção urbana, revelando lugares escondidos, mas também explorando aspectos íntimos de seus autores. Assim, somos recebidos na casa da centenária avó de JR. Assim também, já ao final do documentário, temos uma emotiva passagem em que Varda tenta visitar seu amigo Jean-Luc, concluindo o paralelo que fizera entre o cineasta de “Acossado” (1968) e seu novo amigo, JR (porém este “menos rude” que aquele).

Sempre consciente da passagem do tempo, quase niilista ao encarar a inevitabilidade da morte, o perecimento do corpo, Varda mostra, com isso, a perenidade do espírito e a durabilidade da entrega honesta e integral ao que se ama, como ao Cinema inesquecível que realizara ao longo de mais de sessenta anos de carreira.

Vinícius Volcof
@volcof

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