Cinema com Rapadura

Críticas   quinta-feira, 08 de fevereiro de 2018

O Jovem Marx (2017): quando a mão não serve à luva

Apesar dos personagens cativantes e bem interpretados, a história não se segura por causa de uma trama insegura, que não decide-se entre ser uma cinebiografia ou um drama histórico.

Depois do poderoso “Eu Não Sou Seu Negro” (2016), que lhe rendeu uma indicação ao Oscar de Melhor Documentário no ano passado, o cineasta haitiano Raoul Peck encara o desafio de materializar a primeira fase da trajetória intelectual de um dos maiores teóricos de todos os tempos, Karl Marx (1818-1883). A trama, uma produção transacional entre Alemanha, Bélgica e França, falha, contudo, ao ater-se numa espécie de romantização dos acontecimentos em detrimento de imprimir mais veracidade às passagens, resultando num longa que quase não chega ao mediano.

“O Jovem Marx” parte de 1844, quando aos 26 anos o protagonista vivido por August Diehl (de “Aliados”) conhece seu grande parceiro intelectual, Friedrich Engels (Stefan Konarske, de “Valerian e a Cidade dos Mil Planetas”), com quem iria escrever algumas das principais obras do movimento, como o Manifesto do Partido Comunista (1848), que encerra a narrativa. Nesse ínterim, acompanhamos a penosa rotina de Marx e sua família, de subsequentes ordens de exílio e uma angustiante falta de trabalho, mas, ainda assim, ininterrupta produção teórica. Em oposição, vemos a vida dândi de Engels, herdeiro de industriais que usa a propriedade familiar como campo das pesquisas que resultaram em obras como A Situação da Classe Operária na Inglaterra (1845). Infelizmente tal contraste é explorado pelo roteiro de Peck e Pascal Bonitzer (de “Agnus Dei”) pela via do clichê, construindo uma dinâmica de rivalidade (falo e egocêntrica) inicial que rapidamente se transforma num bromance cansativo que dita o tom do resto da narrativa.

Embora os atores exalem carisma e até mesmo química (“como a mão e a luva”, como os protagonistas dizem à certa altura), a narrativa parece manter-se sempre em desalinho sobre o tom adequado a seguir. Isso se dá, sobretudo, pois ela parece não decidir-se entre ser uma cinebiografia dramática ou um filme histórico. Entre mostrar os pormenores da relação entre Marx e Jenny (vivida com a mesma candura que Vicky Krieps demonstra no mais recente “Trama Fantasma”) e os embates do pensador com seus opositores da teoria socialista e da Liga dos Justos, a narrativa desperdiça as possibilidades de explorar com mais ousadia o contexto de mudança paradigmática nas relações de trabalho que se davam naquele contexto europeu de ápice da Revolução Industrial.

Nesse sentido, embora alguns personagens surjam como presentes ao espectador – como o Proudhon vivido com a maestria de sempre pelo francês Olivier Gourmet (“O Exercício do Poder”) –, eles não duram muito em cena e logo somos jogados de volta a passagens esquecíveis das idas e vindas dos protagonistas. O grande acerto da trama, porém, é  destacar a importância das mulheres nesses acontecimentos, sobretudo através das figuras das esposas e companheiras dos protagonistas. Assim, tanto a personagem de Jenny, esposa de Marx, quanto Mary Burns (Hannah Steele, de “O Destino de uma Nação”), companheira de Engels, têm papel central na história, reveladas como figuras centrais no desenvolvimento das teorias até hoje tão caras a militantes e estudiosos ao redor do mundo. De certa maneira, assim o cineasta corrige o costumeiro erro histórico de apagamento das mulheres ao lado das grandes figuras masculinas que revolucionaram a humanidade, de Mileva Maric (esposa de Einstein) à Eva Braun (esposa de Hitler).

A opção da direção de arte pelos clássicos tons e marrom e cinza para retratar o período e o próprio visual pálido dos personagens (sobretudo de August, reforçando a lendária debilidade e penúria de Marx) não são suficientes para nos permitir uma completa imersão nesse universo. Isso porque alguns takes de Peck parecem arrumados demais, quase novelescos ou no mínimo teatrais, revelando limitações de um diretor sem dúvidas talentoso, porém ainda tateante nas produções ficcionais de maior escala.

Se o engajamento político de Peck nos prometia um encontro fortuíto com a tão esperada biografia de Marx, a tentativa de “crítica social” do final do longa, com a junção de cenas de atuais conturbações políticas sob o som de “Like a Rolling Stone”, de Bob Dylan, faz com a narrativa termine num tom de genérica obviedade. Ao invés de deixar que o espectador faça as conexões entre a vida e obra do protagonista, decide-se por limitar a interpretação, jogo perigosíssimo num contexto atual de enviesamentos político-ideológicos e intolerância com as opiniões divergentes. Desse modo, infelizmente qualquer mensagem mais sólida que daqui pudesse ser extraída, no fim se desmancha no ar.

Vinícius Volcof
@volcof

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