Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 06 de fevereiro de 2018

Pantera Negra (2018): o herói que o mundo precisa

A resposta certa de como um longa de super-herói pode conversar com todos os públicos.

Super-heróis nada mais são que representações atualizadas de deuses e seres mitológicos da antiguidade. Seus poderes, que quase sempre vêm atrelados à extremas responsabilidades, servem como analogia da nossa busca pela singularidade e do quanto somos necessitados de figuras paternais e protetoras em nossas insignificantes vidas, levando em conta a imensa vastidão do universo. Nos vermos representados nos super-seres, ora nos velhos quadrinhos, ora na tela grande, nos faz crer que todos nós também podemos fazer coisas inacreditáveis e que fazemos parte de algo muito maior do que a enfadonha rotina que nos rodeia. Algo que, na cabeça de uma criança, por mais bobo e ingênuo que soe, pode literalmente mudar uma vida inteira. “Pantera Negra” é um filme que chega carregado de responsabilidades, principalmente por seu conceito de igualdade, e que corresponde a cada uma das expectativas direcionadas.

Continuando imediatamente a história contada em “Capitão América: Guerra Civil”, com a morte do rei T’Chaka (John Kani, de “Coriolano”), o príncipe de Wakanda, T’Challa (Chadwick Boseman, de “Marshall”), assume o trono que fora de seu pai, mas vislumbra com isso os problemas e idiossincrasias do poder. Seu reino, apesar de extremamente tecnológico e avançado – principalmente se comparado aos países africanos que o avizinham -, é composto de diversas tribos milenares, com tradições e modo de pensar antigos e independentes. Ao mesmo tempo que encara os violentos costumes da coroação, o novo Pantera nutre sentimentos de vingança contra aquele que é um dos maiores terroristas da região, Ulysses Klaw (Andy Serkis, de “Planeta dos Macacos: A Guerra”), que por sua vez continua cometendo seus crimes impunemente. Junta-se a isso um amor perdido por uma causa maior e um novo algoz, alguém que pode desestabilizar toda a hierarquia de poder atual.

Trazendo em seu plot uma versão “hi-tech/tribal” de “Hamlet”, de William Shakespeare, o longa aposta nas raízes do povo africano como sua força motriz. Orgulho, respeito, tradições, cultura, beleza e família são conceitos explorados da maneira intensa. Apesar de formulaico – até por se tratar de um filme de herói, que obrigatoriamente precisa de ação – o roteiro retrata um drama familiar bastante honesto e crível. É fácil se apegar a personagens tão carismáticos e definidos. Até mesmo o grande vilão, ocasionalmente subdesenvolvido neste tipo de obra, aqui possui motivações reais, algo que nos aproxima de sua figura.

Apesar de destacar a todo momento a pobreza e a disparidade nos países vizinhos – fazendo um óbvio, mas válido paralelo com a desigualdade entre as nações de primeiro e terceiro mundo – os cidadãos de Wakanda nunca são representados como submissos ou subjugados, muito longe disso. Escondidos propositalmente da civilização para proteger sua enorme jazida do metal vibranium, fonte da riqueza e da alta tecnologia do reino, alguns wakandeanos simplesmente não suportam ter essa riqueza apenas para si e se infiltram na escória da civilização para salvar os necessitados. São os heróis do mundo real sendo retratados quase que em pé de igualdade com os da ficção.

Não é somente no realce da cultura negra que se justifica a força empoderadora do longa. Todas as mulheres de Wakanda são fortes, destemidas e autônomas. Seja na indescritível beleza visual e conceitual das figuras das “Dora Milaje”, a guarda absolutamente feminina do rei e, consequentemente, do herói Pantera Negra, seja na inteligência e carisma de Shury (Letitia Wright, da série “Black Mirror”) ou na independência extrema de Nakia (Lupita Nyong’o, de “Rainha de Katwe”), as personagens femininas mostram-se complexas e emancipadas, deixando definitivamente para trás alguns dos velhos e empoeirados conceitos machistas.

O diretor Ryan Coogler é um ótimo criador de cenas plásticas e coerentes. Aqui, como já havia feito antes em “Creed” (2015) e em “Fruitvale Station” (2013), ele basicamente nos coloca na ação do filme o tempo todo. Seja na luta pelo trono no topo de uma cachoeira, seja no lindo plano-sequência do cassino, Coogler sabe movimentar a câmera como ninguém. Apesar deste ser um filme de uma franquia bastante conhecida, que precisa seguir linhas narrativa e visual definidas, o diretor consegue a todo momento impor a sua “marca”, principalmente em suas decisões criativas, como na escolha da diretora de fotografia indicada ao Oscar, Rachel Morrison (“Mudbound – Lágrimas Sobre o Mississipi”), ou no convite ao rapper Kendrick Lamar para encabeçar algumas músicas da trilha sonora, encharcada de hip-hop de ótima qualidade.

Pena que estas belas qualidades não se apliquem ao departamento de efeitos visuais do longa. Há tempos que evidencia-se um incômodo “downgrade” nos CGI’s dos filmes da Marvel Studios. Talvez a pressa, ocasionada pelas diversas estreias anuais da franquia de heróis e na consequente falta de tempo para uma boa finalização do material, seja um dos motivos para esta derrocada. Mesmo com este entendimento, fica bastante difícil não se espantar com a falta de cuidado em algumas cenas. Destaco aqui as detestáveis e risíveis sequencias do conselho tribal no combate da cachoeira e as do clímax, que chegam até a lembrar os indecorosos “bonecões” de computação gráfica de “Matrix Reloaded” (2003).

“Pantera Negra” é basicamente um remake/continuação conceitual da animação “O Rei Leão” da Disney, tanto em sua história quanto em seu amor pelas tradições e culturas africanas. Apostando bem menos no humor do que os últimos filmes do estúdio e trazendo humanidade e representatividade, sem revanchismos baratos, o blockbuster de ação já nasce como uma bela ferramenta de inclusão, além de ser também um ótimo e divertido passatempo. Algo que não pode ser abalado apenas por meia dúzia de efeitos ruins.

Rogério Montanare
@rmontanare

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