Cinema com Rapadura

Críticas   quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Três Anúncios Para um Crime (2017): a ambivalência do ser humano

Com uma história simples e focada nos seus personagens, o longa é uma ode à complexidade humana.

Segundo a filósofa existencialista francesa Simone de Beauvoir*, a ambiguidade é a própria condição humana. É na escolha por um caminho, por uma causa, uma ação, que exercemos ao máximo nossa liberdade. A política, a arte, a literatura, a amizade, a guerra, os laços sociais… do ponto de vista de Simone, tudo isso só pode ser pensado a partir da ambiguidade que lhes é intrínseca. Afinal, não só a condição humana é ambígua. Tudo o que o homem cria é também gerado sob o signo da ambiguidade. “Três Anúncios Para um Crime” é um filme que aborda, como poucos, o conceito de incerteza e insegurança dos homens. Com personagens verdadeiros, viventes, que refletem em micro o que todos nós somos em macro, o longa é uma peça esmagadora, quase excruciante, de espelhamento da nossa incapacidade de nos manter sãos em um mundo que nos surpreende a cada minuto.

Mildred Hayes (Frances McDormand, de “Ave, César”) é uma trabalhadora comum, que mora em uma pequena cidade interiorana dos Estados Unidos e que perde sua filha em um crime brutal. Sem perspectiva de ver o assassino atrás das grades, já que o criminoso não deixou muitas pistas no local, ela tenta fazer justiça da forma que consegue: azucrinando a polícia local por meio de três outdoors em uma estrada esquecida. Os anúncios, que apenas clamam por uma agilidade maior da justiça, são apenas o estopim para algo bem maior. É um pequeno gesto que desmascara toda uma comunidade.

O conceito de bem e mal aqui é irrelevante, talvez até rasteiro. Afinal, em uma sociedade repleta de seres vivos, o que existe é a sobrevivência. Custe o que custar. Quando Mildred é hostilizada nas ruas por sua atitude, que vai de frente com a figura de “bom samaritano” do xerife Willoughby (Woody Harrelson, de “Castelo de Vidro”), ela ganha imediatamente a nossa simpatia. Porém, mais adiante, quando em seu caminho ela toma estradas obscuras e passa a agir da mesma forma que as pessoas que critica, vemos que o parâmetro do que é bom ou mau pode ser bastante elástico, dependendo da ocasião ou da causa à ser defendida. O roteiro, do também diretor Martin McDonagh (“Na Mira do Chefe”), é simplesmente brilhante em trazer para a luz as milhares de lutas internas que os personagens travam. É um texto tão visceral, bem-humorado às vezes, mas tão doloroso para a verdade que carregamos em nós mesmos, que alguns têm confundido o que é dito ali com algum traço de um “ismo” qualquer. Machismo, racismo, sexismo… sim, estão todos lá presentes, mesmo porque, em uma obra sobre seres humanos, seria impossível deixar de fora essas características. Mas o roteirista nunca pega na mão de seus personagens ou os defende de alguma forma. McDonagh apenas trilha o caminho destas pessoas, quase sem intromissão, somente para nos mostrar que todos temos esqueletos no armário e que isso não quer dizer que a rota que precisamos seguir seja àquela que nos foi demarcada.

Com um texto poderoso e extremamente mundano, calcado no chão em que pisamos, o filme seria um desastre se não houvesse um elenco capaz de trazer as nuances e trejeitos que a vida real impõe para os personagens. Por sorte, ou por pura competência, uma verdadeira trinca de aço foi contratada para protagonizar o longa. Woody Harrelson cria, com uma sensibilidade ímpar, um personagem simples que acredita nas pessoas e que só gostaria de aproveitar melhor a vida. Sam Rockwell, que desde “À Espera de Um Milagre” vêm roubando a atenção nos filmes em que atua, é a síntese de todo o dualismo da história. Um homem que foi criado para ser o que é, mas que tem ao seu lado alguém que acredita em seu potencial para a mudança. Frances McDormand é, me desculpem o jargão desgastado, uma verdadeira força da natureza. Desde a emoção que brota dos seus olhos nos momentos mais difíceis da personagem, até os pequenos gracejos que faz para amenizar a sua própria dor, tudo está lá para um propósito e é assim que ela compõe uma personagem única.

A trilha sonora de Carter Burwell, carregada de melodias tocantes e temas marcantes, nunca arroubam o filme para si e são apenas lindos instrumentos da narrativa. Bela também é escolha das canções incidentais, que em dado momento, no desfecho do filme, criam, junto à uma fotografia dolorosamente nostálgica, uma das mais belas poesias audiovisuais do cinema moderno.

Martin McDonagh escreveu, produziu e dirigiu um filme a ser lembrado para sempre. Afinal, “Três Anúncios Para um Crime” é muito mais do que apenas uma obra cinematográfica. É um estudo humano. Não estranhe se achar que a história não traz nada novo, ou que não existe nada de extraordinário ali. O motivo disso é que a nossa vida também é assim. Nós estamos rodeados de péssimas e ótimas escolhas no nosso dia a dia e, assim como os personagens do longa, nós podemos achar que somos bons e um dia darmos um soco em alguém que bateu no nosso carro, por exemplo. Ou podemos ser duros no cotidiano, e salvarmos um cachorrinho na beira da estrada em uma tarde chuvosa. Afinal, como diz Beauvoir e o filme em si, nós somos ambíguos e imprevisíveis.

* Fonte Simone de Beauvoir: avecbeauvoir.wordpress.com
Rogério Montanare
@rmontanare

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