Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 30 de janeiro de 2018

iBoy (2017): uma incapacidade de se manter coerente

Desafiar a suspensão de descrença nunca é um problema se o filme souber respeitar as regras que cria para o seu próprio universo. Infelizmente este não é o caso aqui.

A ferramenta da suspensão de descrença costuma ser uma pedra angular para o cinema; é indispensável por de lado improbabilidades em prol das possibilidades que os roteiros nos trazem. Para isso, as películas se valem da criação do seu universo singular, com regras e parâmetros próprios, e constroem sobre essa base a história que querem contar – ou, ao menos é como deveria acontecer. O filme “iBoy“, produção da Netflix, falha de maneira catastrófica neste conceito mais simples, construindo e destruindo sua trama tantas vezes, que o fim do filme chega como um golpe de misericórdia.

A história traz Tom (Bill Milner, de “X-Men: Primeira Classe“), um rapaz apaixonado por Lucy (Maisie Williams, a Arya Stark de “Game of Thrones“) que, ao tentar fazer uma ligação de emergência para proteger a garota, recebe um tiro na cabeça que também atinge seu celular. Ao despertar do coma, Tom percebe ser capaz de se conectar com aparelhos celulares, podendo realizar ligações, enviar mensagens e até mesmo ativar suas câmeras. Não tarda para que o garoto use os poderes para tentar combater o crime na cidade sob o pseudônimo de “iBoy”.

Tirando a alcunha risível, fica claro ainda na premissa que se trata de um sci-fi adolescente – um bem violento, inclusive. Estupro coletivo, espancamentos e tortura são alguns dos elementos usados pelo roteiro de Joe Barton (“O Ritual”) para acrescentar crudeza à trama que, do contrário, seria consideravelmente genérica dentro das suas limitações juvenis. Assim sendo, o filme tem o destaque de desafiar os limites do aceitável, imposto por outras obras pertencentes ao seu nicho.

A força negativa se dá em grande parte devido ao longa não respeitar suas próprias regras. Em questão de minutos de película, Tom passa de ser capaz de controlar celulares a conseguir invadir carros e mesmo hackear contas bancárias – tudo isso somente com os fragmentos de celular presentes em seu cérebro. O roteiro é incapaz de articular suas ideias, amontoando soluções ridículas para problemas que o protagonista cria para si mesmo. Assim, é impossível que a audiência se preocupe com a integridade do seu protagonista, porque sabe que, independente de qual desafio se interponha, Tom vai exibir um novo e absurdo poder sem nenhuma construção prévia para poder solucionar a questão.

Os esforços dos protagonistas não conseguem levar o filme além da sua mediocridade. De Milner é requisitado um Tom apático, e é isso que ele entrega. Com poucas expressões, em diálogos largamente explanativos, o ator se mostra suficiente no papel, enquanto a Lucy de Williams já apresenta mais nuances. Do meio de seus traumas e de sua personalidade forte, Lucy constitui a personagem mais interessante do longa, embora também sofra de inconsistências em suas atitudes, fruto de seu roteiro mambembe. A direção de Joe Barton é pouco inspirada, intercalando montagens e sobreposições para explicar o que se passa na mente digital de Tom, enquanto uma trilha sonora tecnológica genérica tenta fazer os espectadores assimilarem o que se passa. Embora uma empreitada bem sucedida, porque o filme não se mostra confuso, é também um esforço vão, visto que é difícil ainda se importar com o longa a partir do seu segundo ato.

A suspensão de descrença é indispensável para o bom funcionamento de parte massiva das produções cinematográficas, apoiando-se bastante nas regras estabelecidas nos mundos individuais dos filmes para conseguir prevalecer. Quando o próprio longa não se digna a respeitar os parâmetros de seu universo, para dar sentido ao que está acontecendo com o arco de seu protagonista, torna-se impossível se importar com qualquer outra coisa que não seja os créditos finais que nos liberarão do tedioso sofrimento que é assistir “iBoy”. Com atuações limitadas sob uma direção fraca e roteiro saído de um brainstorming do quinto ano do ensino fundamental, o longa dificilmente funciona com audiências acima pós-juvenis, e tem dificuldade para se sustentar mesmo como entretenimento ralo durante seus noventa minutos de tecnologia – e intenção – frustrada.

Erik Avilez
@eriksemc_

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