Cinema com Rapadura

Críticas   domingo, 08 de outubro de 2017

Blade Runner, o Caçador de Androides (1982): para onde a humanidade caminha?

“Eu vi coisas que vocês nunca acreditariam. Naves de ataques em chamas perto da borda de Orion. Vi a luz do farol cintilar no escuro, na Comporta Tannhauser. Todos esses momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva. É hora de morrer”.

O que falar sobre um dos filmes mais comentados da Sétima Arte? “Blade Runner” é um dos poucos casos absolutos do cinema. Um filme cuja qualidade técnica e relevância para a cinematografia são inquestionáveis. E assim como “2001: Uma Odisseia no Espaço” de Stanley Kubrick, “Blade Runner” se tornou parte de algo maior que sua própria história e definiu como o cinema deve retratar e questionar o limiar da humanidade.

Dirigido por Ridley Scott (“Alien, O Oitavo Passageiro”), “Blade Runner, o Caçador de Androides”, não é diferente de qualquer outra obra da ficção científica de qualidade. O filme é uma leitura da sociedade atual, construída num futuro a ser evitado. Desta forma, a trama principal é uma alegoria. Uma motivação para que o público possa passear pelo que será apresentado.

E quem nos conduz por todo o caminho é Deckard (Harrison Ford de “Star Wars: O Despertar da Força”). Em 2019, a Tyrell Corporation desenvolve um tipo melhorado de replicantes (androides), os Nexus 6. Eles são mandados às colônias espaciais para trabalharem e são criados com um tempo de vida de quatro anos. Quando seis desses replicantes voltam à Terra (onde sua permanência é proibida), cabe a Deckard, um Blade Runner (caçador de replicantes), encontrá-los e dar um destino final a eles.

Numa sociedade que cria androides, construídos à nossa imagem e semelhança, como são vistos aqueles cujo ofício é justamente eliminá-los? E o quão conveniente é chamar tal atitude de “aposentar”? Daí tiramos duas análises, igualmente válidas: é mais fácil eliminar uma criatura, feita à imagem e semelhança de um humano, quando o conceito de assassinato é reduzido à uma simples aposentadoria – uma vez que os replicantes não exercem mais suas obrigações. Ao mesmo tempo, muito se pode compreender de uma sociedade que equipara os conceitos de assassinato e aposentadoria.

Mas o ponto central que permeia a narrativa é a constante busca humana. Aos olhos daquela sociedade, todos estão caçando algo. Dessa forma a missão dos Blade Runners, como caçadores de replicantes, reforça-nos as demais buscas que o filme aborda. Seja no próprio Deckard que procura um sentido no que está fazendo, seja na assistente Rachael, que ao descobrir quem realmente é se dá conta do vazio que a preenche e busca encontrar algum tipo de identidade. Ainda existem os replicantes que correm contra o tempo para conseguirem – veja só – mais tempo em suas próprias existências.

E, enquanto os replicantes correm para conseguir mais tempo, o público se da conta e compreende as sutilezas do roteiro para abordar o significado da experiência humana. Porque é o que, na essência, nos diferencia deles: o tempo de vida e as memórias que construímos (e construiremos) ao longo desse tempo. Durante a curta existência dos replicantes, não há espaço suficiente para construir memórias. Tyrell (Joe Turkel de “O Iluminado”), dono da Tyrell Corporation, sabe o perigo que isso pode representar e nos explica:

“…eles são emocionalmente inexperientes, têm poucos anos para coletar experiências que nós achamos corriqueiras. Fornecendo a eles um passado criamos um amortecedor para sua emoção e os controlamos melhor.”

E essa procura por algo, abordada no filme como uma reflexão filosófica sobre o problema da identidade do ser humano, é reforçada quando nos damos conta que a vida na Terra é fadada aos que não puderam ir às colônias espaciais. Isso quer dizer que se estão aqui, são o que restou da espécie humana. Os não dignos. Não foram aprovados para entrar no lugar onde a humanidade poderá seguir em frente. Assim, quando Tyrell diz que suas criaturas são “mais humanos que os humanos”, ele reforça o tom exclusivista necessário para poder embarcar nesse novo “Novo Mundo”, agora longe da Terra.

Mas “Blade Runner” vai além e nos faz refletir sobre o que de fato nos torna humanos. Por que estão condenados a um planeta, devastado por conflitos nucleares, seres humanos renegados? Seriam eles menos humanos que os que chegaram às colônias? Isso também permite tentar entender em qual ponto da criação os replicantes estão. Qual seria o limiar para se tornar um ser vivo? Em determinado momento, Pris (uma das replicantes que Deckard procura) diz para um de seus criadores: “Penso, Sebastian, logo existo”. Mas se o pensamento dela é programado, pensar poderia ser considerado um critério para definir a existência dela como um ser independente? Ao menos ela tem uma consciência sobre a própria existência, ao dizer na mesma conversa: “Não somos computadores, Sebastian, somos seres vivos”.

Sebastian acaba por se tornar uma peça chave para compreender a sociedade decadente e suja que é a Los Angeles chuvosa que o filme nos entrega. Um cientista, responsável por possibilitar a construção dos Nexus 6, mas impossibilitado de deixar a Terra por sua condição física. E por saber quem são os que permanecem por aqui, isola-se num apartamento onde vive com bonecos animatrônicos.

E do conflito entre como os replicantes se enxergam e como os humanos os vêem, cabe uma das análises mais poéticas do filme: a visão. Não ao acaso, a cena de abertura nos mostra o olho contemplativo de Deckard, observando a decadente sociedade em que vive. É assim que somos convidados também a ver, pela primeira vez, tal sociedade. É também através do olhar que o teste Voight-Kampff consegue descobrir quem é ou não replicante, num discurso de subtexto que carrega um enorme peso, uma vez que os olhos são a janela da alma.

Logo, não seria ao acaso que Roy, antes de matar Tyrell, fura seus olhos. O encontro entre criador e criatura nos entrega a cena mais emblemática do filme, pois ao eliminar a visão de Tyrell, Roy está tirando o que o diferencia dos demais humanos ainda na Terra. O criador, então, morre como apenas mais um.

“Blade Runner” é um filme que conseguiu envelhecer e se tornar cada vez mais atual. E como todo o clássico (cabe novamente a citação ao “2001” de Kubrick e ao robô Hall 9000, que também caminha no limiar entre máquina e humano e também nos é apresentado como um “olho” dentro da nave), foi o tempo que o colocou nessa posição de honra. Afinal, somente ao longo do tempo – tão estimado pelos replicantes – temos como compreender o real impacto de um filme. Olhar para trás e revisitar esses clássicos é uma forma de compreender a importância (e a beleza) do cinema. Da mesma forma, ele cria a necessidade de olhar para frente e perguntar: o quão longe estamos desta realidade?

Robinson Samulak Alves
@rsamulakalves

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