Cinema com Rapadura

Críticas   quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Death Note (2017): receita para o desastre

Com um longa mal acabado e relapso, Netflix desrespeita todas as regras de uma boa adaptação cinematográfica.

Receita para o desastre “Death Note”:

Ingredientes:

– Uma obra de sucesso para se basear;
– Um elenco ordinário;
– Um diretor inapto;
– Uma trama insípida;
– Um maço de músicas desencontradas e incompatíveis com a receita;
– Duas pitadas de polêmicas sobre a origem dos personagens e nacionalidade dos atores;
– Um roteirista despreparado;
– Um toque de soberba.

Modo de Preparo:

– Pegue a obra de sucesso – no caso “Death Note”, a cultuada série de mangá criada de Tsugumi Ohba e Takeshi Obata em 2003, que foi adaptada brilhantemente em uma série anime para a TV, composta de 37 episódios e produzida por Tetsuro Araki em 2006 – e a trate como um produto estritamente comercial, ignorando totalmente a massa de fãs que a idolatram.

– Contrate o diretor inapto Adam Wingard (“Bruxa de Blair” de 2016) e deixe que ele selecione a qualidade dos próximos ingredientes.

– Adicione o roteirista despreparado Jeremy Slater, autor de obras “celebradas” como “Quarteto Fantástico” de 2015 e “Renascida do Inferno” e entregue a ele a missão de adaptar uma trama complexa, que atiça e suscita discussões morais e filosóficas sobre a justiça particular e a ambiguidade do altruísmo, dentre muitas outras, da forma que lhe der na telha. Acrescentando inclusive alguns diálogos indignos e também uma completa descaracterização dos personagens. Adicione a isso a obrigação da sintetização de toda a saga original em míseros cem minutos.

– Apresente a trama insípida, que desonra completamente a composição primordial, e transforme a história de um garoto brilhante que encontra um caderno capaz de extinguir a vida de qualquer pessoa que tenha seu nome anotado nele e que  o utiliza como veículo para a sua ascensão em divindade – ignorando toda a ambivalência moral que vêm associada ao fato – , em uma tramoia sobre um “loser” que quer impressionar uma “gatinha” com um livro que mata pessoas e encontra nela a homicida capaz de “sujar as mãos” quando ele se acovarda.

– Com o péssimo roteiro pronto e a trama sem fazer sentido algum, é hora de constituir o elenco. Como precisamos de um rol de intérpretes ordinários, que tal apostar em um ator medíocre para protagonizar o filme? Nat Wolff (“Cidades de Papel”) supre todas as necessidades para a empreitada e consegue entregar umas das piores performances do ano. Seu Light Turner, além de extremamente irritante como personagem em si, não contém nenhuma camada. É sem conteúdo, liso, inconsistente, sem carisma e inverossímil. Para contracenar com este verdadeiro artista, que tal trazer uma atriz que é até interessante, dona de uma personagem extremamente complexa na série “The Leftovers”, e dar a ela um papel mal desenvolvido e sem nuances? Margaret Qualley não tem chance nenhuma de brilhar aqui e Mia Sutton, a figura que lhe coube, perde a chance de ser o contraponto da história e transforma-se em uma garota amorfa e sem background. Como “L”, o grande investigador particular que desafia Light – um personagem que faz todo sentido em um mundo de mangá/anime e que aqui, jogado friamente no mundo real, é uma alegoria absurda, deslocada e non sense – temos Lakeith Stanfield (“Corra”), que simplesmente passa vergonha frente as câmeras, já que lhe coube o papel de imitar – muito mal, inclusive – o “L” do anime, que aqui, carece de qualquer desenvolvimento. Para acentuar este aspecto “atuações”, basta dizer que todo, repito, TODO o elenco de apoio é abaixo de sofrível.

– Com essa mistura intragável selecionada, é o momento do nosso diretor dar forma a massa. Porém, como se trata de Wingard no comando, prepare-se para algo ainda pior. As cenas são pobremente constituídas, a fotografia é precária e a trilha sonora, muito mal selecionada por sinal, é salpicada aqui e ali sem o menor critério. Com destaque para a vexatória cena final ao som de “The Power Of Love”, do Air Supply. As escolhas narrativas são as piores possíveis e, para completar, as cenas do Shinigami Ryuk, dublado por Willem Dafoe (“A Grande Muralha”), são um desperdício de personagem e não dizem a que vieram.

– Coloque isso tudo no forno do hype, com mais algumas polêmicas extremamente desnecessárias sobre a ascendência dos personagens e sobre a “falta” de atores japoneses fluentes na língua inglesa nos Estados Unidos e voilá: o desastre está na mesa… ou na Netflix!

Peço perdão pelo formato insólito e também por não encontrar pontos positivos ou virtudes na versão live action de “Death Note” da Netflix, pois eles inexistem. Comparando ou não com a excelente criação de Ohba, Obata e o anime de Araki, o longa não se sustenta e é mais um caso se soberba de uma grande produtora perante um respeitado material adorado por milhares de fãs. Uma dica: assista aos três longas japoneses que adaptam a obra em um serviço de VOD mais próximo. Se eles não chegam a ser verdadeiras pérolas cinematográficas, ao menos não causam um terço da irritação provocada pela nova visão da locadora vermelha americana que nós tanto amamos.

Rogério Montanare
@rmontanare

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